Na sequência da publicação do Decreto 2-B/2020, de 02 de abril, fica parcialmente suspenso o exercício de algumas liberdades individuais dos cidadão previstas na Constituição da República Portuguesa em termos de direitos fundamentais, como o sejam, por exemplo, o direito de deslocação e de fixação em qualquer parte do território nacional, o de propriedade e de iniciativa económica privada, determinados direitos dos trabalhadores, direito à circulação internacional, direito de reunião e de manifestação, liberdade de culto, na sua vertente coletiva, ou o direito de resistência, donde, o não acatamento das restrições ora impostas pela declaração de estado de emergência poderão conduzir à responsabilização criminal dos “infratores”.

O referido Decreto 2-B/2020 estabelece, direta ou indiretamente, a prática de crime de desobediência previsto e punido pelo artigo 348.º do Código Penal para atos praticados durante o estado de emergência, e que contrariem o fixado no seu articulado.

De acordo com o artigo 348.º, n.º 1 do Código Penal, o crime de desobediência é aquele em que alguém falte à obediência devida a ordem ou a mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente, caso em que, se assim for, ficarão preenchidos os elementos típicos do tipo incriminador em questão, sendo o “infrator” punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias.
Se assim é para a generalidade dos casos – e sem prejuízo do Código Penal consagrar também a desobediência qualificada – no caso concreto, e considerando o estado de emergência em que nos encontramos, a pena (de prisão) abstratamente aplicável será, afinal de 1 ano e quatro meses por via da agravação prevista no artigo 6.º, n.º 4 da Lei de Bases da Protecção Civil, regulamentada pela Lei n.º   27/2006, de 03.07, com suas sucessivas alterações.

A. Restrições impostas à livre circulação de pessoas em território nacional

Em termos de restrições impostas à livre circulação de pessoas em território nacional, e sobre a prática de crime de desobediência, o referido Decreto 2-B/2020, e enquanto dure o estado de emergência (agora, até 17.04.2020), divide essas restrições em 4 grupos, que são os seguintes:

(i) Confinamento obrigatório

Nos termos do artigo 3.º, n.º 1 do referido Decreto 2-B/2020, de 02.04, estão sujeitos a confinamento obrigatório em estabelecimento de saúde, no respetivo domicílio ou noutro local definido pelas autoridades de saúde,
· Todos os doentes com COVID-19 e os infetados com SARS -Cov2, bem como,
· Todos aqueles a quem a autoridade de saúde ou outros profissionais de saúde tenham determinado a vigilância ativa.

A este grupo de pessoas fica expressamente vedada a possibilidade de circular em espaços e vias públicas, ou em espaços e vias privadas equiparadas a vias públicas, e em qualquer lugar do território nacional, seja em que circunstância for.

O incumprimento desta categórica e absoluta restrição à liberdade de deslocação, faz incorrer o respetivo “infrator” na prática de crime de desobediência, sancionável do ponto de vista criminal, com pena de prisão até um limite máximo de 1 ano e quatro meses, ou com pena de multa.

(ii) Dever especial de proteção

Segundo o artigo 4.º, n.º 1 do referido Decreto n.º 2-B/2020, de 02.04, estão sujeitos a um dever especial de proteção:
· Os maiores de 70 anos;
· Os imunodeprimidos e os portadores de doença crónica que, de acordo com as orientações da autoridade de saúde devam ser considerados de risco, designadamente os hipertensos, os diabéticos, os doentes cardiovasculares, os portadores de doença respiratória crónica e os doentes oncológicos.

Para este grupo de pessoas a restrição de circulação não é total e absoluta, podendo as mesmas, excepcionalmente, circular na via pública para algum dos propósitos previstos no artigo 4.º, n.º 2 do mesmo diploma, e que são os seguintes:
· Aquisição de bens e serviços;
· Deslocações por motivos de saúde, designadamente para efeitos de obtenção de cuidados de saúde;
· Deslocação a estações e postos de correio, agências bancárias e agências de correctores de seguros ou seguradoras;
· Deslocações de curta duração para efeitos de atividade física, sendo proibido o exercício de atividade física coletiva;
· Deslocações de curta duração para efeitos de passeio dos animais de companhia;
· Outras atividades de natureza análoga ou por outros motivos de força maior ou necessidade impreterível, desde que devidamente justificados.

(iii) Dever geral de recolhimento domiciliário

Nos termos do artigo 5.º, n.º 1 do referido Decreto 2-B/2020, e para os casos não abrangidos pelo “dever de confinamento obrigatório” (art. 3.º) ou pelo “dever especial de proteção” (art. 4.º), a restrição de circulação em espaços e vias públicas, ou em espaços e vias privadas equiparadas a vias públicas também não é total e absoluta, podendo as mesmas, excepcionalmente, circular na via pública para algum dos propósitos ai previstos, e que são os seguintes:
· Aquisição de bens e serviços;
· Deslocação para efeitos de desempenho de atividades profissionais ou equiparadas;
· Procura de trabalho ou resposta a uma oferta de trabalho;
· Deslocações por motivos de saúde, designadamente para efeitos de obtenção de cuidados de saúde e transporte de pessoas a quem devam ser administrados tais cuidados ou dádiva de sangue;
· Deslocações para acolhimento de emergência de vítimas de violência doméstica ou tráfico de seres humanos, bem como de crianças e jovens em risco, por aplicação de medida decretada por autoridade judicial ou Comissão de Proteção de Crianças e Jovens, em casa de acolhimento residencial ou familiar;
· Deslocações para assistência de pessoas vulneráveis, pessoas com deficiência, filhos, progenitores, idosos ou dependentes;
· Deslocações para acompanhamento de menores;
· Deslocações de curta duração para efeitos de atividade física, sendo proibido o exercício de atividade física coletiva;
· Deslocações para participação em ações de voluntariado social;
· Deslocações por outras razões familiares imperativas, designadamente o cumprimento de partilha de responsabilidades parentais, conforme determinada por acordo entre os titulares das mesmas ou pelo tribunal competente;
· Deslocações para visitas, quando autorizadas, ou entrega de bens essenciais a pessoas incapacitadas ou privadas de liberdade de circulação;
· Participação em atos processuais junto das entidades judiciárias;
· Deslocação a estações e postos de correio, agências bancárias e agências de corretores de seguros ou seguradoras;
· Deslocações de curta duração para efeitos de passeio dos animais de companhia e para alimentação de animais;
· Deslocações de médicos -veterinários, de detentores de animais para assistência médico-veterinária, de cuidadores de colónias reconhecidas pelos municípios, de voluntários de associações zoófilas com animais a cargo que necessitem de se deslocar aos abrigos de animais e serviços veterinários municipais para recolha e assistência de animais;
· Deslocações por parte de pessoas portadoras de livre -trânsito, emitido nos termos legais, no exercício das respetivas funções ou por causa delas;
· Deslocações por parte de pessoal das missões diplomáticas, consulares e das organizações internacionais localizadas em Portugal, desde que relacionadas com o desempenho de funções oficiais;
· Deslocações necessárias ao exercício da liberdade de imprensa;
· Retorno ao domicílio pessoal;
· Outras atividades de natureza análoga ou por outros motivos de força maior ou necessidade impreterível, desde que devidamente justificados.

Para o incumprimento das relativas restrições à liberdade de deslocação impostas pelo “dever especial de proteção” (art. 4.º) e pelo “dever geral de recolhimento domiciliário” (art. 5.º), o Decreto 2-B/2020 não prevê de forma direta e imediata a prática de crime de desobediência previsto pelo artigo 348.º do Código Penal, estando a norma vocacionada para a concessão de uma advertência ao infrator para que este possa determinar a sua conduta de acordo com o padrão de restrições impostas pela declaração de estado de emergência.

Cabe às forças e serviços de segurança e à polícia municipal fiscalizar o cumprimento das restrições impostas, tendo os mesmos amplos poderes (/deveres) para emanar ordens legítimas impostas pelo referido diploma. O seu não acatamento consubstanciará a prática de um crime de desobediência.

Perante um eventual incumprimento da sensibilização, com subsequente ordem, feita à pessoa para recolhimento ao domicílio, e estando a mesma na via pública sem razão que o justifique em face do quadro legal em vigor, então, nos termos do artigo 43.º, n.º 1, al. c) do mesmo diploma, incorrerá o “infrator” na prática de crime de desobediência previsto no artigo 348.º do Código Penal, punível com pena de prisão até 1 ano e quatro meses, ou com pena de multa.

(iv) Limitação à circulação no período da Páscoa

Segundo o artigo 6.º, n.º 1 do referido Decreto 2-B/2020 os cidadãos não podem circular para fora do concelho de residência habitual no período compreendido entre as 00H00 do dia 09.04.2020 e as 24H00h do dia 13.04.2020, salvo nos casos previstos em que a restrição não é imposta, e que são os seguintes:
· Deslocações por motivos de saúde ou por outros motivos de urgência imperiosa;
· Deslocações dos profissionais de saúde e outros trabalhadores de instituições de saúde e de apoio social, bem como das forças e serviços de segurança, militares e pessoal civil das Forças Armadas, inspectores da Autoridade de Segurança Alimentar e Económica, e ainda aos titulares de cargos políticos, magistrados e líderes dos parceiros sociais;
· Deslocações para efeitos de desempenho de atividades profissionais admitidas, sendo que estes terão de se fazer acompanhar de uma declaração da entidade empregadora que ateste que se encontram no desempenho das respetivas atividades;
· Deslocações entre as parcelas dos concelhos em que haja descontinuidade territorial.

O incumprimento destas restrições impostas à liberdade de deslocação, faz incorrer o respetivo “infrator”, e de acordo com o artigo 43.º, n.º 1 al. d) in fine do referido Decreto 2-B/2020 na prática de crime de desobediência tal como prefigurado no artigo 348.º do Código Penal, punível com pena de prisão até um limite máximo de 1 ano e quatro meses, ou com pena de multa.

B. Restrições impostas à livre iniciativa económica

Os artigos 9.º a 11.º do referido Decreto 2-B/2020, de 02.04, estabelecem também restrições à liberdade de iniciática económica privada, sendo imposto o encerramento de instalações e estabelecimentos de certas categorias de áreas comerciais.

O incumprimento destas restrições à liberdade de iniciativa económica, faz incorrer o respetivo “infrator”, e de acordo com o artigo 43.º, n.º 1 al. d) in fine, do referido Decreto 2-B/2020 na prática de crime de desobediência tal como prefigurado no artigo 348.º do Código Penal, punível também com pena de prisão até um limite máximo de 1 ano e quatro meses, ou com pena de multa.

C. Do eventual preenchimento de outros tipos legais de crime, para além do de desobediência

Perante o incumprimento das medidas restritivas às referidas liberdades individuais dos cidadãos, poderão ainda concorrer com o referido tipo incriminador de desobediência outros tipos legais de crime, como o sejam, por exemplo, o crime de propagação de doença (art.º 283.º do CP) e, no limite, até de homicídio (art. 132.º do CP).

Departamento de Direito Penal e Contraordenacional

Alcides Martins, Bandeira, Simões & Associados
Sociedade de Advogados, SP, RL