In Vida Judiciária, nr 200, março/abril 2017
1. O surgimento da responsabilidade pelo risco
Entre diversos seguros que se escoram na atividade laboral, avulta o que procura cobrir a responsabilidade adveniente dos acidentes de trabalho.
Assim como aconteceu no direito laboral, também o seguro de acidentes de trabalho tem a sua génese no novo tipo de relações sociais resultantes da Revolução Industrial, ainda que já em momento serôdio. Foram as calamitosas condições de trabalho na indústria em série que vieram a ditar a responsabilização da entidade empregadora, mesmo sem culpa, pelos danos resultantes dos acidentes sofridos pelos seus trabalhadores.
Passando para a perspetiva jurídica, será bom lembrar que o seguro do acidente de trabalho assenta na ideia de responsabilidade civil objetiva ou pelo risco, que é concebida e desenvolvida, precisamente à volta dos acidentes de trabalho e … de automóvel, ao cerrar o século XIX.
Foi a Lei n.º 83, de 1913, que passou a prever a responsabilidade dos empregadores pelo ressarcimento dos danos causados pelos acidentes de trabalho. Mas só depois da Grande Guerra surge o regulamento, prevendo que para as questões suscitadas na aplicação desta lei serão criados tribunais especiais de desastres no trabalho, constituídos pelos delegados dos patrões, operários e médicos, com voto deliberativo e representantes das companhias de seguros com voto consultivo.
2. Os acidentes de trabalho e o seguro
Na Constituição, todos os trabalhadores têm direito, para além do mais, à prestação do trabalho em condições de higiene, segurança e saúde. Tal dispositivo é desenvolvido pelo Código do Trabalho, onde se contêm os princípios gerais em matéria de prevenção e reparação de acidentes de trabalho e doenças profissionais. Tais princípios, na esteira do art.º 284.º do mesmo Código, vêm a ser regulamentados pelas leis da promoção da segurança e saúde no trabalho (Lei n.º 102/2009) e da reparação de acidentes de trabalho e de doenças profissionais, incluindo a reabilitação e a reintegração profissionais – LAT – (Lei n.º 98/2009) .
Nesta Lei, no que ao seguro de acidentes de trabalho concerne, interessam, sobremaneira, os art.ºs 79.º e 81.º que instituem o sistema e unidade de seguro obrigatório e a apólice uniforme. O sistema de seguro centra-se na obrigação dos empregadores transferirem a responsabilidade pela reparação dos danos para entidades legalmente autorizadas a realizar este seguro. Mas não deixa de prever-se a responsabilidade primária da empresa e apenas subsidiária da companhia de seguros quando o acidente tiver sido provocado pela entidade empregadora ou seu representante, ou resultar de falta de observação das regras sobre segurança, higiene e saúde no trabalho. Nestas situações, as prestações indemnizatórias são mais elevadas e podem gerar-se ainda responsabilidade por danos morais e responsabilidade criminal. Também as empresas serão responsabilizadas diretamente quando a retribuição declarada para efeito do prémio de seguro for inferior à real.
O sistema legal que se acaba de sintetizar está em consonância com o art.º 107.º da Lei de Bases da Segurança Social, que traça as diretrizes básicas para a proteção obrigatória em caso de acidente de trabalho. Convirá lembrar ainda que a simultaneidade do acidente de trabalho e de viação tem a sua previsão no art.º 26.º da lei do seguro automóvel.
Verificado algum acidente de trabalho ou sinistro, deve o trabalhador dar conta à empresa empregadora e esta comunicá-lo à seguradora (e, de imediato, ao tribunal em caso de morte) que deve, por sua vez, proceder à sua participação ao juízo do trabalho competente, desde que tenha resultado a morte ou a incapacidade permanente para o trabalhador, originando-se assim um processo emergente de acidente de trabalho e, portanto, o controlo judicial da reparação dos respetivos danos.
As situações incapacitantes para a vida das pessoas, nomeadamente para a prestação da atividade laboral, que resultam dos acidentes, encontram-se tipificadas na Tabela Nacional de Incapacidades por Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais.
3. O contrato de seguro de acidentes de trabalho
No que tange ao seguro obrigatório de acidente de trabalho, dada a sua especial natureza e alcance social, logo no regime jurídico do contrato de seguro se preveem especiais medidas para a observância da lei pelas seguradoras que explorem tal ramo.
Como os restantes contratos de seguro, também o de acidentes de trabalho tem de constar de uma apólice. Mas da sua obrigatoriedade, a generalidades das cláusulas constam da apólice uniforme. Ainda existe o Fundo de Acidentes de Trabalho, sob a égide da ASF.
O empregador pode assumir posição de «tomador de seguro», pois é a entidade que celebra o contrato de seguro com a seguradora, sendo responsável pelo pagamento do prémio. Já o trabalhador será o «segurado» dado que é a pessoa no interesse da qual o contrato é celebrado ou a pessoa (pessoa segura) cuja vida, saúde ou integridade física se segura. Ainda o trabalhador (ou, eventualmente, os seus herdeiros) será o «beneficiário» que é a pessoa singular a favor de quem reverte a prestação da seguradora decorrente do contrato de seguro, em caso de sinistro.
O seguro de acidentes de trabalho poderá ser um «seguro individual», porquanto poderá ser contratado relativamente a uma pessoa. Todavia, normalmente configura-se como um «seguro de grupo» por ser um seguro de um conjunto de pessoas ligadas entre si e ao tomador do seguro por um vínculo ou interesse comum; mais concretamente, será um «seguro de grupo não contributivo» porque o tomador do seguro contribui na totalidade para o pagamento do prémio.
Em caso de resolução do contrato, esta deve ser comunicada pela seguradora à ACT. Ainda esta resolução “não é oponível a terceiros lesados até 15 dias” após tal comunicação. Em qualquer caso, a resolução não exonera o tomador do seguro da obrigação de pagar os prémios ou frações em dívida até ao fim da sua vigência efetiva.
4. Os processos judiciais
Como processos especiais dos mais típicos do direito processual laboral, sobressaem os processos emergentes de acidente de trabalho e de doença profissional, cuja disciplina básica preenche o capítulo II do título VI do Código de Processo do Trabalho (art.º 99.º a 155.º).
Tais processos, segundo as quatro secções do citado capítulo, são tipificados pelo modo seguinte: para a efetivação de direitos resultantes de acidente de trabalho; para declaração de extinção de direitos; para efetivação de direitos de terceiros conexos com acidente de trabalho e ainda o processo para efetivação de direitos resultantes de doença profissional.
Face a estas designações e tendo em conta a sucessão e até a extensão do regime jurídico de cada um, facilmente se concluirá que o primeiro – o processo para efetivação de direitos resultantes de acidente de trabalho – é o processo, de longe, mais utilizado, para além de paradigmático, pois inspira e dá corpo normativo ao último, isto é, ao processo para efetivação de direitos resultantes de doença profissional.
Através do aludido procedimento judicial especial visa-se, essencialmente, o controlo sobre a existência e a caracterização do acidente de trabalho, o nexo de causalidade, apuramento das suas sequelas (incapacidade para o trabalho), a determinação das reparações correspondentes e dos seus responsáveis.
É um procedimento especial, tendo natureza urgente, de acesso limitado, desenvolvendo-se oficiosamente e logo após o recebimento pelo MP da participação do acidente. É, portanto, nele secundarizado o princípio do dispositivo (das partes). Tramitará pelo tribunal ou juízo do trabalho territorialmente competente, que será, em princípio, o do lugar onde o acidente ocorreu. Em regra, corre contra o empregador e/ou a sua seguradora ou contra terceiro e, eventualmente, contra o Fundo de Acidentes de Trabalho – FAT.
Como processo laboral, é enformado pelo princípio da conciliação e, em consequência, tem um ritualismo curioso, pois compõe-se de uma primeira fase conciliatória, dinamizada pelo magistrado do MP e, gorando-se esta, total ou parcialmente, então, também de uma fase contenciosa.
Apesar de obedecer ao princípio da celeridade, a sua marcha depende muito das peritagens médicas o que, em regra, muito agrava a sua morosidade e o desprestigia.
Alcides Martins
Advogado e professor convidado ISCTE – IUL