Publicado em Vida Económica, 24 de fevereiro de 2023
Muito se tem falado do problema da habitação, querendo significar-se que as rendas nas grandes cidades estão em valores que é difícil conseguir pagar.
O arrendamento é um contrato: dentro dos limites da lei, as partes têm a faculdade de fixar livremente o conteúdo dos direitos e obrigações que reciprocamente aceitam. O contrato de arrendamento está tipificado na lei (em rigor, em várias leis), contendo o seu regime algumas normas imperativas e altamente limitadoras da autonomia das partes.
Para além desse regime, diretamente aplicável ao arrendamento, outras normas afetam esses contratos: consequências fiscais, por exemplo, ou o tempo que demora a resolução de um litígio que ocorra entre as partes.
O Governo entendeu que a regulamentação existente não era ainda suficiente e, vai daí, colocou em discussão pública uma série de medidas que apresentou como a tentativa de “responder de forma completa a todas as dimensões do problema da habitação”.
É importante realçar: as propostas serão colocadas em discussão e só depois aprovadas em Conselho de Ministros ou submetidas a aprovação pela Assembleia da República. Muitas delas não chegarão a ver a luz do dia, por certo, ou não da forma como agora foram apresentadas.
Uma das mais polémicas, para não dizer absurdas, é a “ameaça” de arrendamento compulsório de casas devolutas.
É curioso notar que o fundamento para esta medida é, nas palavras do Governo, a necessidade de reforçar a confiança dos senhorios: não se alcança como a medida poderia ser adequada a produzir esse efeito.
Talvez se devesse antes responder a outra questão: porque será que os proprietários, podendo arrendar os imóveis e, ao que parece, cobrando rendas milionárias, optam, irracionalmente, por não o fazer?
Será por receio de que não haja pagamento de rendas nem se possam servir de um mecanismo rápido e eficaz para fazer cessar o contrato?
Será por a carga fiscal a que ficam sujeitos ser insuportável?
Será por terem outros planos para um bem que é seu?
Se o legislador souber o que impede que as casas sejam colocadas no mercado, talvez, com mais eficácia, pudesse aprovar medidas ajustadas ao fim que se propõe.
Depois haveria questões práticas.
O Estado vai previamente resolver as situações em que, por exemplo, a propriedade dos imóveis está ainda em discussão em processos de partilha (segundo os Censos 2021, é uma das causas mais relevantes para a não colocação no mercado desses imóveis)?
Como vai convencer os inquilinos a estarem em imóveis que, neste momento, já estão no mercado de arrendamento (ou de venda) e não têm interessados (segundo os Censos 2021, cerca de metade dos 700.000 que se estimam devolutos)?
Vai depositar nas contas dos proprietários, também coercivamente, as rendas cobradas? As rendas de mercado? Ou rendas sociais? E tributá-las, por certo?
E interpelar o proprietário para fazer a substituição ou reparação de equipamentos que se danifiquem? Ou descontar diretamente no valor da renda?
E devolver imediatamente o imóvel, no estado em que estava, no caso de o proprietário pretender dar-lhe destino, seja a sua própria habitação, o arrendamento a quem entender e nas condições que entender, a venda, o comodado a quem lhe merecer essa estima?
O Governo publicou o Despacho 3260/2022, de 7 de março, de que consta a lista atualizada do património imobiliário público sem utilização que identifica, por município, os imóveis do domínio privado do Estado ou dos institutos públicos e os bens imóveis do domínio público do Estado que se encontram em inatividade, devolutos ou abandonados.
É uma longa lista de 47 páginas, não seria de começar por aí? Teríamos o Governo a liderar pelo exemplo, e não por Decreto.
O Estado propõe-se ainda a “arrendar todas as casas disponíveis durante cinco anos” para subarrendar. Ao mesmo tempo, garante que comprará “qualquer tipo de habitação”, isentando o proprietário vendedor de mais-valias resultantes dessa venda.
O Estado e os Municípios têm já direito de preferência na transmissão da maior parte dos imóveis vendidos. Contam-se pelos dedos as vezes em que tal preferência tenha sido exercida.
A compra e os arrendamentos, presume-se, serão feitos pelos preços praticados no mercado: é como se um grande Fundo Imobiliário agora anunciasse a sua disponibilidade para adquirir todos os imóveis disponíveis.
Está também anunciado o controlo das rendas de novos contratos: não poderão ser superiores a (mais ou menos, e nas circunstâncias atuais) 5% da última renda praticada.
Uma das causas (se não a principal) de nunca ter havido um forte mercado de arrendamento em Portugal foi o congelamento das rendas (ou o seu não descongelamento). Recordar-se-ão mais facilmente as medidas imediatamente posteriores ao 25 de abril, mas, em rigor, já um Decreto de 1910 tinha congelado as rendas (e um outro, de 1917, obrigara ao arrendamento de casas devolutas, sem sucesso). Não é resultado do acaso que mais de 70% dos portugueses tenha casa própria.
Numa altura em que se apregoa que é necessário convencer os proprietários a arrendar e dar segurança aos senhorios, congelar as rendas (de novo) parece evidentemente contraditório com o anunciado e contraproducente quanto ao pretendido.
Anuncia-se também que o Estado passaria a “substituir-se ao inquilino no pagamento e ao senhorio na cobrança da dívida, verificando se há uma causa socialmente atendível e resolvendo-a ou despejando-o”, ou seja e de acordo com o anunciado, assumiria o pagamento da renda a partir do momento em que há 3 meses em atraso, quando o processo se inicia no Balcão Nacional do Arrendamento.
Uma nota prévia: não basta o curso de 3 meses de renda para que o processo se possa iniciar no BNA. É obrigatória a interpelação do inquilino – e através de uma formalidade especial, que é a notificação judicial avulsa – e o curso do prazo de 1 mês para que este possa por termo à mora (pagando o valor atrasado e um adicional de 20%). Na prática, poderão passar 5 meses sem que o inquilino pague renda até que o senhorio possa iniciar o processo de resolução e despejo do locado.
Existe atualmente um mecanismo que tem por objetivo compensar o senhorio pelo curso do processo de despejo: o Fundo de Socorro Social, do Instituto de Gestão Financeira do Estado.
No âmbito de um processo de despejo, no momento de entregar o locado (por vezes longos meses depois de se ter iniciado o processo), o inquilino poderá pedir o diferimento da entrega com fundamento em “razões sociais imperiosas”. Se o pedido for atendido, e por um prazo máximo de 5 meses, as rendas que se vencerem nesse período podem ser pedidas ao Fundo pelo senhorio. Demorará longos meses a recebê-las, mas a previsão já existe e tem aplicação.
O princípio, no entanto, parece certo.
No 3 trimestre de 2022 o prazo médio para a conclusão de um processo no BNA era de 174 dias, ou seja, cerca de 6 meses. Ser o Estado a pagar essa demora pode ser o incentivo que faltava a que os processos corram mais ligeiramente.
A criação de incentivos fiscais para tentar determinar os visados ao comportamento pretendido pode ser uma forma: o legislador escolhe a política pública que é privilegiada, e os visados decidirão se lhes é ou não vantajoso.
É o caso das medidas propostas para a redução ou isenção de imposto de IRS sobre os rendimentos prediais, no caso de arrendamento e ao mesmo tempo que se cria um imposto especial sobre os rendimentos do alojamento local, ou a redução de encargos com a aquisição de imóveis para destinar ao arrendamento acessível.
Esta intervenção não deixa de criar injustiças: os atuais proprietários, que têm e têm mantido os seus imóveis no mercado do arrendamento, continuarão a pagar impostos; quem converter os alojamentos locais para arrendamento habitacional estará isento do pagamento desse imposto até 2030; quem comprar casa para habitação própria e permanente continuará sujeito a IMT, mas quem adquirir uma segunda casa para destinar ao arrendamento (de renda acessível), estará isento desse imposto; haverá IVA a 6% para quem faça obras em casas que coloque em regime de renda acessível, mas não para as outras, muitas com arrendamentos com 30 e mais anos, em que as rendas cobradas não são o suficiente para quaisquer obras de restauro ou recuperação.
Se os proprietários não forem incentivados (e com estas medidas, não são) a fazer investimento, se não lhes for permitido obter rendimentos a partir dos bens que têm, se não puderem guardar ou reinvestir a justa parte desses rendimentos, se não puderem com rapidez e eficácia fazer cessar o incumprimento do contrato, são os inquilinos que, no médio e longo prazo, continuarão a suportar o custo da falta de casas para habitar.
Impor uma solução apenas para tentar resolver o problema dos inquilinos de hoje, será a causa do problema dos inquilinos de amanhã.
Susana Amaral Ramos
Advogada de Alcides Martins, Bandeira, Simões & Associados
– Sociedade de Advogados, SP, RL