Foi publicado o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 468/2022, de 22 de julho, que declara inconstitucional, com força obrigatória geral, a norma do n.º 5 do artigo 168.º-A, da Lei 2/2020, de 31 de março.
Tentando traduzir de juridiquês para português.
A referida Lei é a que aprovou o Orçamento de Estado para 2020, tendo a norma em concreto analisada sido aditada em 24 de julho de 2020, pela Lei 27-A/2020 (o chamado Orçamento Suplementar).
O n.º 5 do artigo 168.º-A previa que, nos contratos de exploração de loja em centros comerciais, não seriam devidos quaisquer valores a título de renda fixa até 31 de dezembro de 2020.
Como a alteração legislativa apenas entrou em vigor em julho de 2020, estava em causa a dispensa do pagamento da parte fixa das rendas devidas por estes lojistas nos meses de julho a dezembro de 2020: 6 meses.

Durantes esses 6 meses os centros comerciais foram abrindo e encerrando, com horários mais ou menos reduzidos, com mais ou menos limitações quanto ao acesso do público.
Nessa fase, de resto, o público não queria ainda frequentar centros comerciais, o medo da pandemia não se tinha ainda dissipado e, convém lembrar, o pior período da pandemia viria ainda a ocorrer, entre o fim de dezembro de 2020 e o mês de janeiro de 2021. Não tanto por causa do número de contágios (no início de 2022, registaram-se 4 vezes mais casos), mas porque o pânico se gerou, sem vacinas disponíveis ainda, com as ambulâncias paradas em filas à porta dos hospitais, com pessoas a morrer às centenas por dia. Não era um ambiente propício a passeios pelos centros comerciais.

Desde a publicação da Lei 4-C/2020, logo em 6 de abril, e na sequência da imposição de encerramento de todos os serviços não essenciais, os inquilinos tinham à sua disposição a possibilidade de pedir uma moratória, ou seja, poderiam diferir o pagamento das rendas que se vencessem durante os meses em que vigorasse o estado de emergência (e o seguinte), para os 12 meses posteriores ao término desse período, altura em que teriam que retomar os pagamentos normais, acrescidos dos duodécimos do que estavam em atraso.
Cada centro comercial, entretanto, apresentava esta ou outras propostas alternativas aos lojistas, umas mais vantajosas, outras menos: nenhuma com o alcance que a lei viria a ter.

É neste cenário que a Assembleia da República aprovou a referida norma: durante 6 meses, a parte fixa a pagar pelos lojistas dos centros comerciais não seria devida (apenas a variável, que é fixada numa percentagem sobre as vendas que são feitas na loja, e a contribuição para as despesas comuns, relativas à manutenção do respetivo centro).
A intenção do legislador era a de reequilibrar os contratos: as duas partes receberiam em função do negócio que efetivamente fosse feito.

A norma viria a ser sujeita a fiscalização abstrata sucessiva da sua constitucionalidade, ou seja, da sua conformidade com a Constituição da República Portuguesa. A Provedoria de Justiça considerou (de forma muito simplificada e resumida) que tal disposição constituía um limite inaceitável (inconstitucional) ao direito de propriedade dos donos dos centros comerciais, que inclui também o direito a receber as rendas acordadas com os inquilinos.
Ainda que se reconheça no aresto que a pandemia deixou os (estes) lojistas numa situação gravosa e que é também um princípio constitucional o da solidariedade, não aceita o Tribunal Constitucional que a sua situação seja mais merecedora de proteção do que os donos dos centros comerciais. Na verdade, o argumento utilizado pelo Julgador é exatamente o oposto: seria a suspensão do pagamento da retribuição fixa a desequilibrar os contratos, em prejuízo (injustificado) dos proprietários.

A apreciação do Tribunal começa por enveredar por um caminho de aconselhamento ao legislador: as medidas para apoiar os lojistas poderiam e deveriam ter sido de outra índole, desde linhas de crédito a financiamentos, de moratórias a medidas fiscais.
Finalmente, desemboca numa verdadeira correção pelo poder judicial do que foi a vontade expressa pelo poder legislativo: a norma não é simplesmente considerada inconstitucional, é corrigida.
Há, em direito e na aplicação das leis, o princípio de que o legislador expressou o que realmente quis e que o fez devidamente: cabe ao intérprete (designadamente, aos tribunais) apreender esse conteúdo e aplica-lo.
No caso, o Tribunal considerou que estaria em melhor posição que o legislador para determinar o conteúdo da norma (explica no Acórdão as suas razões), de modo que, com a eficácia retroativa que é atribuída à decisão do Tribunal, aplicar-se-á, no período entre julho e dezembro de 2020, uma nova norma, conhecida agora, em julho de 2022, introduzida no sistema legislativo pelo Tribunal.
A solução encontrada pelo Acórdão é a de substituir a disposição que a Assembleia da República aprovou para aquele período, pelo teor da norma que foi aprovada para o momento seguinte (e é um dos argumentos para a decisão ser como foi), ou seja, a partir de 1 de janeiro de 2021.
O que se aplicará, portanto, é a redução proporcional do montante da renda fixa a pagar, por referência ao volume de vendas do lojista, com o limite máximo de uma diminuição de 50% nessa parcela da renda.

Bom, esta decisão final não será o termo do litígio; na verdade, é provavelmente apenas o início.
Haverá outras formas de defesa dos lojistas, aliás, argumentos que tinham sido usados nas negociações com os centros comerciais, ainda antes da publicação da lei que agora é alterada, e a que o próprio Tribunal Constitucional também alude: impossibilidade da prestação, alteração das circunstâncias, o dever de renegociar os contratos.
Sem aquela disposição legal expressa, cujo teor é agora alterado pelo Tribunal Constitucional, terá que se recorrer ao conjunto do ordenamento jurídico, que já existia e continuará a existir, e que tem instrumentos para responder a situações excecionais como foi (é?) a pandemia e os desequilíbrios contratuais que se geram nas relações entre partes.
O impulso legislativo do Tribunal Constitucional acaba de criar as condições para longos e fartos litígios.
Este Tribunal não terá feito justiça, mas outros hão de ir fazendo, caso a caso.

Susana Amaral Ramos
Advogada de Alcides Martins, Bandeira, Simões & Associados
– Sociedade de Advogados, SP, RL

[Vida Económica, de 29 de julho de 2022]