Publicado em Vida Judiciária, nr 198, novembro/dezembro 2016
1. Da previdência à segurança social
É conhecida a evolução, no devir humano, das ideias de assistência e de previdência, como modos de proteção social. A assistência, praticada desde os primórdios, emana do sentimento da solidariedade humana e é muito ligada à religiosidade. Já a previdência, tem natureza individualística ou de grupo. Passou a ser organizada legalmente, a partir dos finais do século XIX, em prol do operariado nascido da Revolução Industrial. Mas é pelos meados do século seguinte, que alguns Estados, alargando o leque das suas funções, começam a cuidar da proteção dos cidadãos em geral perante certas eventualidades na vida (riscos sociais), independentemente da sua situação profissional e da tributação paga. É nesta lógica que assenta o conceito de segurança social.
A expressão “segurança social”, advinda do inglês, não tem uma significação correta, nem unívoca, pois, sendo custeada pela sociedade, beneficia, essencialmente, o indivíduo e pouco tem a ver com a segurança de natureza policial. Em Portugal, a ideia de “segurança social” foi institucionalizada por lei de 1977, que, na sequência da Constituição de 1976, aprovou o sistema de segurança social e a sua estrutura orgânica, constituindo, nomeadamente, os centros regionais de segurança social, que foram englobando muitas caixas e outras instituições de previdência, mantendo-se, na atualidade, apenas duas caixas, uma das quais é a dos Advogados e Solicitadores.
Antes, existia um sistema de previdência social, cujas instituições haviam assim sido classificadas em 1935 e, depois, pela Lei n.º 2.115, de 18 de Junho de 1962, da qual resultou o Regulamento Geral das Caixas Sindicais de Previdência, que continha a disciplina jurídica do sistema. Abrangia apenas os trabalhadores por conta de outrem (e familiares) e as respetivas empresas e centrava-se na ideia do seguro social obrigatório ou mutualismo dos riscos.
Estruturando o novo sistema de segurança social, a primeira lei de bases foi a Lei n.º 28/84, de 14 de Agosto. Atualmente, o sistema básico resulta da Lei n.º 4/2007, de 16 de Janeiro, adiante designada por Lei de Bases, ou apenas LB. Como aludido, essencialmente, este sistema de segurança social visa a proteção da população em geral perante determinados e cada vez mais riscos sociais e não apenas a dos trabalhadores subordinados. O benefício concedido mais sintomático é o Rendimento Social de Inserção (RSI) que “visa garantir mínimos sociais, protegendo os grupos de maior fragilidade e vulnerabilidade, em situações de pobreza extrema, distinguindo-se de outros apoios e prestações sociais por incluir uma componente de integração e inclusão”, conforme referido no DL 1/2016.
Num sentido mais amplo de segurança social portuguesa, pode-se nela englobar o clássico regime dos funcionários e agentes públicos e de alguns outros trabalhadores, que se centra na Caixa Geral de Aposentações, IP (C.G.A.), na Direcção-Geral de Proteção Social dos Trabalhadores em Funções Públicas (ADSE) e na Assistência na Doença aos Militares das Forças Armadas (ADM). Todavia, já se encontram em aplicação os mecanismos de convergência dos regimes de pensões da função pública com o regime geral da segurança social, razão que determinou a obrigatoriedade de inscrição dos funcionários e trabalhadores do Estado no regime geral dos trabalhadores por conta de outrem.
Num terceiro sentido ainda mais amplo, a segurança social englobará, pelo menos, também o Serviço Nacional de Saúde, através do qual é prestada a assistência médica, cirúrgica e medicamentosa à generalidade das pessoas, mediante o financiamento pelo Estado, ou seja, através da carga fiscal, nomeadamente, sobre o consumo. Corresponde ao chamado Estado Social ou Estado Providência, já difundido pela Europa, observado parcialmente na América Latina e em discussão na América do Norte.
2. A organização do sistema
Na atual Lei 4/2007, de 16 de Janeiro, que aprova as bases gerais do sistema de segurança social, como referido, tal sistema abrange três sectores que bem se distinguem, desde logo, pelo seu tipo de financiamento e pelos benefícios concedidos. São eles:
– o sistema de proteção social de cidadania;
– o sistema previdencial; e
– o sistema complementar.
Salientando, o sistema previdencial, de conformidade com o disposto no art.º 50.º, “visa garantir, assente no princípio de solidariedade de base profissional, prestações pecuniárias substitutivas de rendimentos de trabalho perdido em consequência da verificação das eventualidades legalmente definidas”.
Compulsando, entre outras disposições, o que se estipula nos art.s 26.º, quanto ao sistema de proteção social de cidadania e no art.º 81.º, ambos daquela LB, em relação ao sistema complementar, conclui-se que apenas o sistema previdencial “deve ser fundamentalmente autofinanciado, tendo por base uma relação sinalagmática direta entre a obrigação legal de contribuir e o direito às prestações”. É nisto que se consubstancia o princípio da contributividade mencionado no art.º 54.º da mesma Lei. É certo que também no sistema complementar o seu financiamento será efetivado e em exclusivo pelos interessados (empresas e trabalhadores) mas numa base voluntária, convencional e, portanto, não obrigatória.
Assim, apenas no sistema previdencial, existe aquela obrigação legal de contribuir, donde resulta a marcante relação ou situação jurídica correspondente. O seu escopo contém-se no Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social (CRC), que passou a vigorar em 1 de Janeiro de 2011, depois de introduzidas alterações pela Lei n.º 55-A/2010, de 31 de Dezembro. No que tange ao relacionamento jurídico na concessão das prestações aos beneficiários do sistema neste sistema previdencial, vigoram diplomas específicos, nomeadamente na proteção do desemprego, da invalidez e velhice e na doença.
3. O financiamento
Não iremos indagar sobre os meios de financiamento da segurança social, que é a temática mais relevante e muito menos sobre a sorte do Estado-Providência. Porém algumas notas serão aduzidas para se obter uma melhor compreensão do tema, salientando-se que o quadro genérico do financiamento do sistema da segurança social, se contém no capítulo VI (art.s 87.º a 93.º) da LB e no Decreto-Lei n.º 367/2007, de 2 de Novembro.
Destes diplomas, resulta que o financiamento da segurança social deve obedecer ao princípio da adequação seletiva, que “consiste na determinação das fontes de financiamento e na afetação dos recursos financeiros, de acordo com a natureza e os objetivos das modalidades de proteção social e com as situações e medidas especiais, designadamente as relacionadas com políticas ativas de emprego e formação profissional”.
Deste quadro resulta que constituem, em geral, formas de financiamento da segurança social: as quotizações dos trabalhadores por conta de outrem e dos trabalhadores independentes e as contribuições das entidades empregadoras, para além das transferências do Orçamento do Estado.
Relativamente ao sistema de proteção social de cidadania (que integra os subsistemas de ação social, de solidariedade e de proteção familiar – art.º 28.º da LB) o seu financiamento já resulta, essencialmente, de transferências do Estado, nomeadamente através das receitas fiscais consignadas ao sistema (IVA social).
Voltando ao financiamento do sistema previdencial, a sua gestão financeira deverá obedecer aos métodos de repartição e de capitalização, sendo este último concretizado através da capitalização pública de estabilização. Em suma, através do método da repartição, o valor das receitas é distribuído através das despesas, nomeadamente com as prestações pagas aos beneficiários, pressupondo existir equilíbrio entre os dois fluxos financeiros. Já através da capitalização, procura-se poupar parte das receitas para financiar, mais tarde, os encargos assumidos, nomeadamente, com os chamados benefícios diferidos, entre os quais se salientam as pensões de reforma ou de velhice e de sobrevivência. Tem por objetivo em termos legais “contribuir para o equilíbrio e sustentabilidade do sistema previdencial”, devendo garantir, através das reservas acumuladas no Fundo de Estabilização Financeira da Segurança Social, um montante equivalente ao pagamento de pensões aos beneficiários por um período de dois anos” (art.º 16.º do DL 367/2007).
A relação entre os dois métodos constitui um dos temas mais debatidos da segurança social, por a questão se encontrar entrelaçada com o desenvolvimento económico e com a demografia, incluindo-se nesta a esperança de vida. Basicamente, haverá que ter em conta a necessidade de equilíbrio entre as três gerações: a dos jovens, a da população ativa e a dos idosos.
4. A relação jurídica contributiva
Conforme resulta da sua extensa denominação e do disposto nos seus primeiros artigos, o chamado Código Contributivo regula os diferentes regimes tributários do sistema previdencial da segurança social que se fundamentam em três grandes categorias de pessoas: trabalhadores por conta de outrem e equiparados, independentes e com inscrição facultativa (seguro social voluntário).
O escopo normativo de cada um de tais regimes, assenta sempre, depois de definir o seu âmbito de aplicação, nas seguintes situações essenciais, crismados como relações jurídicas, e que são as de vinculação e a contributiva. Nesta última, avulta a delimitação da base de incidência, que, face ao escopo da segurança social, diverge da do IRS e até do conceito de retribuição traçado no Código do Trabalho.
Neste contexto, cada regime contributivo assenta na relação jurídica de vinculação específica, que deriva da inscrição e do enquadramento do beneficiário e do contribuinte. Destas especificidades (no enquadramento, nas contribuições e nos benefícios) resultam os diferentes regimes contributivos de que o Código trata. Acontece que, essencialmente, por razões históricas, um destes regimes é predominante, constituindo o quadro legal de referência em relação aos restantes (como se estatui no art.º 4.º), ou seja o paradigma. Trata-se do regime geral dos trabalhadores por conta de outrem ou apenas “regime geral”.
A evolução do sistema de previdência para o de segurança social, acarretou o nascimento de diversos regimes contributivos atinentes a distintas camadas de trabalhadores, que já havia começado pelos comerciantes (nos anos 60) e pelos rurais, inicialmente, apelidados de “regimes especiais”. E isto para além da proteção social concedida a diversos grupos de pessoas sem previamente terem contribuído para o sistema, o que veio a designar-se por proteção social de cidadania.
É naquela perspetiva, que, no n.º 2 do art.º 4.º do Código, se admite que aquele normativo geral pode ser objeto de adaptações no que respeita, designadamente ao âmbito pessoal (entidades abrangidas); ao âmbito material (prestações ou benefícios concedidos) e à obrigação contributiva (taxas e base de incidência).
E desta forma permite-se a adaptação do regime geral “às condições e características específicas do exercício da atividade e das categorias de trabalhadores”. Como são já tantos os desdobramentos do regime geral, tornou-se desejável, como faz o Código no art.º 5.º, distribui-los em três grandes categorias, que são:
– o regime aplicável à generalidade dos trabalhadores por conta de outrem;
– o regime aplicável aos trabalhadores integrados em categorias ou situações específicas (membros dos órgãos estatutários das pessoas coletivas, trabalhadores no domicílio, praticantes desportivos… ;
– o regime aplicável às situações equiparadas a trabalho por conta de outrem (membros de igrejas e em regime de acumulação).
5. As instituições de segurança social
Considerando a obrigação de contribuir na sua essencialidade, o titular do direito, ou seja, o sujeito ativo, será, aprioristicamente, a Segurança Social. A sua boa administração deve ser garantida pelo Estado (art.º 24.º, n.º 1 da L.B.). Naturalmente, corporiza-se numa estrutura orgânica, que, “compreende serviços que fazem parte da administração direta e da administração indireta do Estado”. E, no dizer do n.º 2 do art.º 4.º, as instituições da segurança social são pessoas coletivas de direito público que se integram na administração indireta do Estado.
Ora no que tange aos sujeitos (ativos) da obrigação contributiva, entre estas instituições da segurança social, avultam o Instituto da Segurança Social, IP – ISS e o Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, IP – IGFSS. Nas regiões autónomas, já será o Instituto da Segurança Social da Madeira e o Instituto da Segurança Social dos Açores – IPRA. A própria Caixa Geral de Aposentações também pode ser classificada como instituição de segurança social, pois gere o “regime de segurança social pública”. Mas por lei foram consideradas instituições de segurança social, ainda o Instituto de Gestão de Fundos de Capitalização da Segurança Social, IP e o Instituto de Informática, IP.
Mas, na estrutura orgânica do sistema de segurança social e como seu órgão principal de gestão, sobressai o Instituto de Segurança Social, IP – ISS, IP, no qual se inserem os centros distritais da segurança social e o Centro Nacional de Pensões, cuja orgânica consta do DL n.º 83/2012, de 30 de março. Para além da gestão das prestações do sistema de segurança social, no que tange à atividade contributiva, são atribuições deste ISS, IP, as seguintes: arrecadar as receitas do sistema de segurança social, assegurando o cumprimento das obrigações contributivas; participar às secções de processo executivo do IGFSS, IP, as dívidas, designadamente por contribuições e respetivos juros de mora e reclamar os créditos em sede de processos de insolvência e de execução de índole fiscal, cível e laboral, bem como requerer, na qualidade de credor, a declaração de insolvência.
Por seu turno, o Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, IP foi criado em 1977 e a sua orgânica atual consta do DL n.º 84/2012, de 30 de março que o classifica enquanto instituição de segurança social, também como “instituto público de regime especial integrado na administração indireto do Estado, dotado de autonomia administrativa e financeira, personalidade jurídica e património próprio”. Nos seus estatutos, para além de outros serviços, prevêem-se as secções de processo, que são unidades de 3.º nível chefiadas por coordenadores com âmbito distrital. Dos seus atos há lugar ao recurso para os tribunais administrativos e fiscais.
Nos termos do art.º 3.º daquele Decreto-Lei “o Instituto tem por missão a gestão financeira unificada dos recursos económicos consignados no orçamento da segurança social”, inserindo-se as suas atribuições nas áreas do planeamento, orçamento e conta; da gestão da dívida à segurança social; do património imobiliário e da gestão financeira do sistema de segurança social”. Nos domínios de tais atribuições, compete-lhe, na área dos contribuintes: zelar pelo cumprimento das obrigações dos contribuintes, assegurar e controlar a cobrança das contribuições e das formas de recuperação da dívida à segurança social e assegurar a sua cobrança coerciva.
É, pois, com esta base legal, que o IGFSS, não sendo o credor das contribuições devidas no âmbito do sistema previdencial da segurança social, assume o papel de seu gestor e cobrador, avocando com o ISS a posição de sujeito ativo da relação jurídico-contributiva. O fundamento jurídico para a cobrança advém-lhe do Orçamento do Estado, onde o orçamento para a segurança social se compendia nos mapas X a XII, para além dos dois mapas seguintes com as receitas e despesas dos subsistemas de ação social, de solidariedade e de proteção familiar do Sistema de Proteção Social de Cidadania e do Sistema Previdencial.
6. As entidades empregadoras e os contribuintes
Quem são os contribuintes no sistema previdencial da segurança social? A resposta só aparentemente é simples. E para a dar e torná-la compreensível torna-se necessário ver o campo de aplicação deste sistema previdencial que é estabelecido no art.º 51.º da LB. De harmonia com este artigo são abrangidos, obrigatoriamente, na qualidade de beneficiários, as seguintes categorias de trabalhadores:
– trabalhadores por conta de outrem;
– trabalhadores legalmente equiparados aos trabalhadores por conta de outrem;
– trabalhadores independentes; e ainda,
– certas pessoas que não exerçam atividade profissional ou que exercendo-a não sejam por esse facto enquadradas obrigatoriamente na segurança social.
Para os efeitos do direito da segurança social, devem considerar-se como entidades empregadoras, como resulta dos seus termos, todas as pessoas singulares ou coletivas que tenham trabalhadores ao seu serviço mediante contrato de trabalho ou contrato equiparado. Por ser mais elucidativa, a expressão “entidade empregadora” surge com mais correta por ter maior abrangência do que a de “empresa” utilizada no hodierno direito do trabalho nacional.
Como, na perspetiva do direito da segurança social, as entidades empregadoras são sempre contribuintes é esta a designação usual e prevalecente, até nos textos legais. Porém, como vimos, não se pode olvidar que há também beneficiários contribuintes e há empresários que são também beneficiários, aliás obrigatoriamente.
“A obrigação contributiva das entidades empregadoras – como se estipula no n.º 2 do art.º 56.º da L.B. – constitui-se com o início do exercício da atividade profissional dos trabalhadores ao seu serviço”. Para tanto, como já se frisou, torna-se necessária a inscrição no sistema, quer dos contribuintes, quer dos beneficiários, o que se consubstancia na referida relação jurídica de vinculação e, subsequentemente, num dos numerosos regimes.
Mas, compulsando, agora, o texto do art.º 56.º da mesma LB, logo se verifica que são “obrigados a contribuir para o sistema”, isto é, são, igualmente, contribuintes, os identificados beneficiários e quando estes exercem atividade profissional subordinada, também as respetivas entidades empregadoras. O caso mais flagrante é o dos trabalhadores independentes, porquanto, não tendo empregadores, são, simultaneamente, beneficiários e contribuintes.
Alcides Martins
Alcides Martins, Bandeira, Simões
& Associados – Sociedade de Advogados, RL