In Vida Judiciária, nr. 200, março/abril 2017
A previsão legal é a do artigo 396.º, número 2 do Código das Sociedades Comerciais: a caução pode ser substituída por um contrato de seguro, a favor dos titulares de indemnizações, cujos encargos não podem ser suportados pela sociedade (…).
A previsão destina-se expressamente aos administradores de sociedades anónimas, e, mesmo aí, não a todas as SA: apenas às sociedades emitentes de valores mobiliários admitidos à negociação em mercados regulamentados ou às que cumpram dois de três requisitos: total de balanço de € 100.000.000, total de vendas líquidas de € 150.000.000 ou média de trabalhadores anual igual ou superior a 150. A caução mínima a prestar nestes casos é de € 250.000,00.
As assembleias-gerais de acionistas das restantes SA podem dispensar os seus administradores – o que geralmente fazem – da prestação de caução. Estando dispensados, naturalmente não têm necessidade de substituir essa caução (no valor mínimo € 50.000,00 nestes casos) pela contratação de um seguro.
Importará, antes de mais, identificar algumas das situações em que pode o gestor (e não apenas o administrador de uma SA) ser pessoalmente responsável pelo ressarcimento de danos e a quem.
Os administradores respondem perante a Sociedade comercial pelos danos causados pelos seus atos ou omissões, praticados (ou omitidos) em violação de deveres legais ou contratuais.
Nos termos do artigo 64.º, são seus deveres fundamentais, designadamente, agir com cuidado e diligência, com competência técnica, no interesse da sociedade e dos acionistas. Atualmente, os conceitos de corporate governance e de comply (por exemplo) estão na ordem do dia e começam a ter consequências práticas.
Para além de lesar a Sociedade, alguns desses comportamentos podem ser considerados crimes ou ilícitos de mera ordenação social, assim expressamente descritos no Código das Sociedades Comerciais. Nestes casos, até a atuação negligente pode ser punida e os gestores podem ser diretamente condenados no pagamento das coimas aí previstas, para lá da compensação que seja devida à própria Sociedade, em face de danos que comprovadamente tenha suportado.
Os administradores podem assumir igualmente responsabilidade para com os credores da Sociedade quando, por inobservância culposa das disposições legais ou contratuais destinadas à proteção destes, o património da Sociedade se torne insuficiente para a satisfação dos respetivos créditos.
Em particular, o Código de Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE) disciplina a forma de apreciar e valorar o comportamento dos gestores e de os responsabilizar, sendo caso disso, através do incidente de qualificação da insolvência, desencadeado sempre que seja requerido pelo Ministério Público ou por qualquer credor.
De entre as possíveis consequências de uma decisão de qualificação da insolvência encontra-se a condenação dos responsáveis no pagamento aos credores dos valores que lhe sejam devidos e não satisfeitos pela massa insolvente.
Desde a alteração recente ao Código do Trabalho, resultante da Lei 28/2016, de 23 de agosto, também a contratação de trabalhadores em regime trabalho temporário pode penalizar as empresas que os contratem e os administradores, pessoalmente.
Numa altura em que começam a ser normais as acusações de mobbing e assédio moral no local de trabalho e frequentes as condenações judiciais, por valores elevados quando comparados com outras sentenças de condenação por danos morais num contexto não laboral, a responsabilidade por infrações laborais será uma área de futuro cuidado para os gestores (se não é já).
Os administradores são responsáveis solidariamente entre si pelas dívidas tributárias e são responsáveis subsidiariamente em relação à sociedade, ou seja, podem ser chamados a responder pessoalmente caso o património da sociedade se mostre insuficiente para a satisfação das dívidas tributárias.
Essa responsabilidade é estendida às dívidas à Segurança Social, conforme prescreve o Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social.
A redação anterior do artigo 396.º apenas previa a possibilidade de o seguro ser feito em favor da Sociedade, o que resultaria na garantia apenas das responsabilidades perante a própria empresa. A partir de 2006, passou a prever-se que o seguro pode ter como beneficiários os titulares da indemnização, alargando significativamente a possibilidade de transferência desse risco.
Ser administrador, gerente ou diretor (são as expressões que a lei frequentemente usa para identificar os destinatários das suas previsões) pode ser, de facto, uma profissão de risco. Para limitar esse risco, várias seguradoras disponibilizam um seguro D&O (Directors and Officers’ Insurance). As coberturas previstas naturalmente variam consoante a seguradora, mas, em regra, garantem a responsabilidade do tomador do seguro perante a Sociedade, o pagamento da sua defesa e representação jurídica, a responsabilidade da Sociedade perante terceiros causada por atos ou omissões do tomador, a responsabilidade direta perante terceiros.
Algumas seguradoras disponibilizam inclusivamente coberturas específicas para dirigentes reformados e cônjuges ou herdeiros das pessoas seguras.
O seguro cobre tendencialmente todas as responsabilidades que sejam exigidas, independentemente da data da prática do ato ou omissão que a origina, desde que a reclamação seja apresentada no período de vigência do contrato de seguro.
É certo que a tradição de responsabilizar os administradores, gerentes ou diretores não está enraizada em Portugal. Dirão algumas más-línguas que não está enraizada a tradição de responsabilizar, ponto. Será talvez por essa longa constatação de impunidade ou, ao menos, de justificação demasiadamente fácil que se gerou um afã de penalizar tudo e todos.
No caso da responsabilidade pessoal dos administradores, gerentes ou diretores não será essa a (única) justificação. O facto é que temos em Portugal um tecido empresarial composto por uma esmagadora maioria de pequenas e médias empresas, em que os titulares do capital são também os gestores (ou seus familiares próximos). O sucesso da empresa é, não raras vezes, o sucesso dos sócios e dos dirigentes, sendo o inverso também verdade, não sendo usual (já aconteceu alguma vez?) que uma destas empresas demande os seus gestores por alguma responsabilidade cujo cumprimento lhe exijam. Até com boas razões: a Sociedade bem sabe que o gestor estará pessoalmente tão ou mais endividado que a própria, em resultado das garantias pessoais que prestou em benefício da Sociedade.
Em 2015 (o mais recente ano com estatísticas disponibilizadas pela Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões) o número de seguros de crédito e de caução contratados foi de 12.153. Nesse mesmo ano foram constituídas 35.572 sociedades, estando então em atividade 644.803. O número de apólices contratadas, portanto, e aí se incluindo as que titulam seguros de crédito, corresponde a 1,8% do número de sociedades em funcionamento.
De todo o modo, o escrutínio desejável e crescente a que são sujeitas as empresas e os seus gestores tenderá a aumentar o risco assumido por quem as lidera. Considerando o seu benefício próprio em caso de sucesso, compreende-se a partilha do risco no caso de insucesso. A diferença entre o sucesso retumbante e o insucesso avassalador pode, no entanto e com alguma frequência, à parte da prévia preparação e ponderação que se exige, compreender um ou vários elementos aleatórios. Se é certo que o gestor não deve ser incauto, não é menos verdade que terá que ter liberdade e coragem para arriscar e tomar decisões, sem receio de consequências eventualmente gravosas para o seu património. É também para reestabelecer esse equilíbrio que pode encontrar-se utilidade na contratação de um seguro de responsabilidade civil.
A mudança do paradigma sobre a responsabilidade dos dirigentes e a exigência crescente para que haja consequências quando se apurar a sua culpa, parece deixar antever profundas e abruptas alterações. Não fará mal que os administradores, gerentes e diretores se segurem.
Susana Amaral Ramos
Advogada de
Alcides Martins, Bandeira, Simões & Associados,
Sociedade de Advogados, SP, RL