Se o devedor for uma pessoa singular, pode ser-lhe concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste. É assim que o artigo 235.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE) desenha o mecanismo conhecido por exoneração do passivo restante, aplicável às pessoas singulares.
O instituto é relativamente novo em Portugal, tendo sido codificado apenas pelo Decreto-Lei 53/2004, de 18 de março, que aprovou o atual CIRE. No preâmbulo desse diploma, o legislador explica a sua intenção na aprovação desta disposição: de entre outros objetivos, concretiza o princípio do fresh start para as pessoas singulares, de boa-fé, incorridas em situação de insolvência.
O que resulta deste instituto, em termos muito sintéticos, é que os créditos de uma pessoa singular cuja insolvência seja decretada, que não sejam pagos pelo produto da liquidação do seu património nem depois, nos 5 anos seguintes ao encerramento do processo, consideram-se exonerados. A intenção é a de que o devedor possa começar de novo. Em contrapartida, aos credores é imposto que suportem a perda.
A utilização de crédito (bancário) pelos particulares vulgarizou-se a partir dos anos 90, assim que passou a ser permitido: para a compra de casa, dos móveis, do carro, das férias. Praticamente tudo o que se pode comprar, pode agora ser pago em suaves prestações mensais.
Do crédito concedido pelas instituições financeiras a operar em Portugal a pessoas singulares, 4,44% está classificado como malparado, o que corresponde a 5,4 mil milhões de euros. Desse valor, 2,5 mil milhões corresponde crédito a habitação e o restante a crédito ao consumo.
Não falta quem acuse as instituições financeiras de terem concedido crédito predatório, ou seja, de terem financiado os sonhos ou desvarios de pessoas que não tinham meios para os vir a pagar. É uma visão condescendente dos devedores, característica muito portuguesa de esperar que alguém os guie e se responsabilize pelas suas decisões.
Entre a aceitação das propostas de créditos que com frequência se recebem em casa e o pedido de financiamento que se possa buscar, a verdade é que uma parte dos portugueses contratou um ou vários créditos, e tem o dinheiro contado para o seu pagamento e nem sempre chega. Qualquer imprevisto, por isso (seja uma situação de doença, de desemprego ou de simples avaria do carro), facilmente determina a impossibilidade de cumprir as obrigações assumidas, nos prazos contratados.
O legislador tomou partido, entre os interesses dos credores e os dos devedores: escolheu os dos devedores, que estiverem de boa-fé. Já as Ordenações Afonsinas distinguiam entre os devedores que tinham feito malefícios e os outros; os maléficos deviam ser presos, os outros não (tinham apenas que realmente pagar).
Os pressupostos fixados no CIRE, porém, apontam um caminho claro para o que deve ser a interpretação do Tribunal: o pedido de exoneração será deferido, a menos que haja fundamento para que não seja.
As causas para a recusa são fixadas taxativamente na lei: por exemplo, se o devedor mentiu para obter créditos nos 3 anos anteriores, se o devedor já beneficiou de uma decisão de exoneração do passivo nos 10 anos anteriores, se não se apresentou à insolvência no prazo de 6 meses desde que se reconheceu como tal (sem possibilidade ou esperança de recuperação, têm os Tribunais complementado), se fez desaparecer o seu património.
Quem tem que alegar e demonstrar a verificação de factos que impeçam a exoneração, é o credor. Não só tem o credor que investigar e procurar saber informações que, em princípio, fazem parte da vida íntima ou particular do devedor e podem por isso ser inacessíveis, como tem que o fazer num curto espaço de tempo.
Esta distribuição do ónus de alegar e provar é um importante entrave à oposição que os credores queiram apresentar.
Sendo aceite o pedido do devedor, é proferido um despacho inicial de exoneração que fixa as obrigações a que ele ficará sujeito, sob pena de a decisão ser revogada. O devedor compromete-se a exercer uma profissão remunerada ou a ativamente procurar trabalho, a não ocultar rendimentos que tenha e a não privilegiar nenhum credor em detrimento de outros.
Mais uma vez, a fiscalização que algum credor queira fazer do cumprimento destas condições esbarra na dificuldade, em alguns casos inultrapassável, das informações pessoais que será necessário obter.
Durante o período da cessão – os 5 anos entre o encerramento do processo de insolvência e o despacho de exoneração – o devedor compromete-se ainda a entregar a parte dos rendimentos que auferir e que excedam o valor que o Tribunal fixar como sendo o mínimo razoavelmente necessário para uma vida digna.
Enquanto nos processos executivos se fixa um valor mínimo que não pode ser penhorado – o valor corresponde ao salário mínimo nacional ou mais de 1/3 do salário auferido – no processo de insolvência não há um limite mínimo nem máximo (mesmo o valor máximo que corresponde a 3 salários mínimos é meramente indicativo, podendo ser fundadamente afastado pelo juiz).
O Tribunal decide de que montante absolutamente necessita o devedor e apenas o que sobrar servirá para pagamento aos credores.
Como o devedor está de boa-fé – ou não poderia sequer beneficiar deste instituto – os rendimentos que tem não são o bastante para pagar aos credores; de contrário, pagaria, sem se ter colocado numa situação de insolvência.
Feitas as contas, o mais das vezes, o valor que o Tribunal fixa como sendo o absolutamente necessário é muito próximo do valor dos rendimentos auferidos pelo devedor. Em resultado, pouco ou nada sobra para os credores ao longo desses 5 anos.
O processo de insolvência de pessoa singular, portanto, tem vindo a tornar-se, pelas disposições legais que o regem e, sobretudo, pela aplicação jurisprudencial que delas tem sido feita, numa forma expedita e praticamente indolor para o devedor se ver livre da maior parte das dívidas que tenha, geralmente, aos bancos. Embora se compreenda que as dívidas com origem na prática de ilícitos criminais e a obrigação de alimentos não fiquem sujeitos à exoneração, não se vislumbra real justificação para que os créditos tributários sejam também excluídos.
O pedido é apresentado pelo devedor e, em regra, rapidamente julgado. O administrador de insolvência promove e trata da liquidação do património. Os rendimentos que o devedor tenha não são significativamente alterados. Os credores pouco (ou nada) podem fazer para investigar e denunciar situações de abuso.
Uma das consequências da declaração de insolvência é o devedor não obter financiamento bancário nos anos próximos, mas a mesma dificuldade teria no caso de ser executado em processo judicial. Nesse caso, porém, os processos mantêm-se enquanto o credor tiver nisso interesse e o promover, mantendo-se a dívida ainda que o processo executivo seja extinto por inexistência de bens.
Não é, por isso, de estranhar que a maior parte dos pedidos de insolvência sejam da iniciativa do próprio, e não raras vezes quando já há processos executivos em curso. É que a insolvência de pessoas singulares está direcionada, e tornada, numa forma airosa de os devedores deixarem de o ser, com prazo certo.
Mesmo para quem entenda que tal solução possa ser justa, ou ao menos justificável, para os bancos, que fomentaram a concessão de crédito irresponsável, não será para os credores também de boa-fé, como será o caso do senhorio ou do merceeiro. A lei não distingue os credores de boa-fé dos credores de má-fé, como faz com os devedores.
As disposições legais garantem o fresh start pretendido pelo legislador; mas a facilidade com que as disposições de favorecimento dos devedores são aplicadas, permite antes um sweet getaway.
Susana Amaral Ramos
Advogada de
Alcides Martins, Bandeira, Simões & Associados,
Sociedade de Advogados, RL
Publicado em Vida Judiciária, nr. 192, Nov-Dez 2015