A família e o direito que a rege
Naturalmente, a família, continuando a ser uma realidade social de notória relevância, começa pelo nascimento. Mas no nosso Código Civil, o seu Livro IV, depois de um breve Título I, contendo as disposições gerais, trata, pormenorizadamente, do casamento (Título II), que considera a principal das fontes das relações jurídicas familiares, seguindo-se o parentesco, a afinidade e a adoção (estas sob os normativos dos títulos seguintes). Aliás, a noção de casamento é logo inserida no segundo artigo do mesmo Livro (1577.º), sendo na sua versão hodierna “o contrato celebrado entre duas pessoas que pretendem constituir família mediante uma plena comunhão de vida…”
A primazia dada ao regime do casamento pelo legislador de 1966, não respeitando a vida como ela é, não era inocente. O casamento, sendo a origem da família era o instituto ordenador da vida em sociedade, por excelência, o que estava em consonância com a religiosidade predominante, ainda trentina, encimada pela cúpula da Concordata (de 1940), que proibia o divórcio aos casados “pela Igreja”, e que eram a generalidade, tudo em consonância com a “vontade popular”.
Mas a evolução da sociedade não se queda e a democracia e a liberdade foram-se enraizando, colocando o sacro casamento em crise. E isto, quer a montante, pelo alargamento das fronteiras do namoro; quer a jusante, através da acessibilidade ao instituto do divórcio, inicialmente valorando a culpa dos cônjuges, que deixou de ter relevância em 2008. De resto, também o prazo internupcional (art.º 1605.º) parece ter os dias contados e, na verdade, passou a haver razões científicas para tal acontecer.
Porém, a ciência ainda não conseguiu “produzir” filhos nos casamentos entre pessoas do mesmo sexo, novidade introduzida pela Lei 9/2010, de 31 de maio, e como, também neste campo, o amor só eternamente é jurado, foi concebida uma textura jurídica para a adoção, pela Lei 2/2016, de 29 de fevereiro.
Igualmente em discussão se encontra a possibilidade de gestação de substituição, regime aprovado pela Lei 25/2016, de 22 de agosto, mas ainda em discussão no Tribunal Constitucional.
A união de facto (regulada pela Lei 7/2001, na versão dada pela já referida Lei 2/2016) como figura afim do casamento mas com raízes mais profundas, carece de ser crismado de forma diferente na medida em que passou a ter largos efeitos de direito.
As temáticas do Direito de Família acabadas de esboçar deixam pano para mangas, que não cabem nesta revista. Vamos, assim, delas nos divorciar e atentar na questão primordial da situação das crianças na sequência do divórcio ou separação dos pais e na sua evolução com o conceito de família.
O poder paternal na família nuclear
Como se viu, a sociedade está em mudança. Mudança de hábitos, mudança de mentalidades, mudanças essas que chegaram, inevitavelmente, às famílias. E devemos falar hoje em “famílias”, pois há mais do que uma família: a família extensa, a família nuclear, a família monoparental, entre outras.
Se há 50 anos, no nosso país (e em muitos outros), o modelo de família estava assente na família nuclear, com os papéis de cada elemento definido, hoje assistimos a uma diversidade de realidades familiares em que os papéis de cada elemento se foram alterando drasticamente. O pai (por vezes a mãe) era a autoridade e o sustento, o disciplinador, e o cônjuge e os filhos deviam-lhe respeito e obediência. A mulher era normalmente a que não trabalhava fora de casa (ou das propriedades rurais), que cuidava das lides domésticas e que tinha o encargo dos filhos, cabendo-lhe, em exclusivo ou quase, assegurar todas as suas necessidades. A mãe era a cuidadora do lar, do marido e dos filhos.
A legislação do direito da família, nomeadamente o Código Civil na redação dada pelo D.L n.º 496/77 de 25 de novembro e a prática judiciária refletiam (e mantiveram) esta realidade social. Em situações de divórcio, que passou a crescer e alargar-se, a guarda dos filhos era entregue à mãe, assim como o poder paternal, ficando o pai obrigado ao pagamento de uma pensão de alimentos e com direito a visitar os filhos, em regra, quinzenalmente. Dispunha ainda o artigo 1906.º n.º 1 do Código Civil, (na redação dada pela Lei 84/95 de 31 de agosto, que: “O poder paternal é exercido pelo progenitor a quem o filho foi confiado”, e no seu n.º 4 que: “ ao progenitor que não exerça o poder paternal assiste o poder de vigiar a educação e as condições de vida do filho”. Apesar do divórcio, os papéis da família tradicional mantinham-se: o pai continuava a ser o sustento, a mãe a cuidadora dos filhos.
O exercício conjunto das responsabilidades parentais
Na família nuclear os papéis foram-se modificando: a mãe passou, na sua maioria, a trabalhar fora de casa, a desempenhar cada vez mais cargos de responsabilidade e com elevado grau de exigência profissional, obtendo a autonomia financeira e, naturalmente, começou a reclamar da figura paterna na ajuda e apoio no cuidado aos filhos. O pai, outrora o sustento da família, passou a dividir esse papel com a mãe, e esta passou a dividir o seu papel de cuidadora.
Com a patente alteração dos papéis na família nuclear, o pai naturalmente, começou cada vez mais a reclamar uma maior intervenção na vida dos filhos em situação de divórcio e procurando deixar de ser o único ou o principal “alimentador”.
As decisões judiciais, invariavelmente, apelavam ao critério da figura primária de referência, critério utilizado nos Estados Unidos, (Primary Caretaker numa decisão do Supremo Tribunal de West Virginia), critério ainda hoje muito observado na jurisprudência dos tribunais superiores, para assim atribuírem, quase sempre, a guarda dos filhos à mãe. Socialmente o pai passou a assumir o cuidado dos filhos, mas esta evolução não teve eco nem na legislação nem na jurisprudência, onde o papel do pai continuou a ser o de “pai disneylandia”, ou pai de fim-de-semana.
A grande discrepância entre a realidade social e a realidade judicial impulsionou a mudança da cobertura legal, e em 2008 foi publicada a Lei n.º 61/2008, de 31 de Outubro, que viria revolucionar, quase completamente, as relações entre os progenitores portugueses. Desde logo, o conceito de “poder paternal” desapareceu, dando lugar à expressão de “responsabilidades parentais”. Dispõe agora o artigo 1906.º do Código Civil que: “ As responsabilidades parentais relativas às questões de particular importância à vida do filho são exercidas em comum por ambos os progenitores nos termos que vigoravam na constância do matrimónio (…)”
A criança passou a ser vista como centro de direitos, (situação que se veio a acentuar com a reforma legislativa operada pela Lei n.º141/2015 de 8 de setembro), e o exercício das responsabilidades parentais passou a ser conjunto. Todas as decisões de relevo para a vida do menor passaram a ter de ser tomada por acordo por ambos os progenitores. Cada pai viu, deste modo, ser-lhe reconhecida a capacidade de decisão e de intervenção na vida dos filhos que já há muito vinham reclamando. Ambos os progenitores passaram a ter de dialogar com vista à obtenção de consensos.
Foi assim que o tribunal passou a ser chamado a resolver os mais variados diferendos entre os pais, passando os menores a ficar muitas vezes com as suas vidas suspensas. Todos os desacordos, quando persistem e originam o avolumar de processos judiciais, fazem crescer o conflito entre os progenitores, sabendo quem são os prejudicados.
Acresce que este novo direito trouxe igualmente consigo um novo poder, o de bloqueio. O legislador previu estas situações de abuso, consagrando uma exceção à regra no artigo 1906.º n.º 2 do Código Civil: o exercício das responsabilidades parentais é conjunto, exceto quando tal seja considerado contrário aos interesses dos menores.
Mas se a lei previu situações de abuso, podemos questionar o motivo pelo qual esta exceção não é aplicada a maioria das vezes pelos nossos tribunais. Em regra, o exercício das responsabilidades parentais é fixado conjuntamente, e assim se mantém, mesmo quando resulta do processo que um dos progenitores usa aquele direito como uma forma de bloqueio, ou até que não o usa de todo, revelando um total desinteresse pela vida do filho. É de manter este direito dos progenitores nestas situações?
O exercício conjunto das responsabilidades parentais deve ser a regra, ambos os pais devem ter a capacidade de decidir acerca da vida dos filhos, mas o poder de decisão de qualquer progenitor deverá ser-lhe vedado, caso resulte do processo que é única e exclusivamente usado como forma de bloqueio, e de coação. Só aplicando a exceção que a lei previu, é que se poderá diminuir o conflito, e melhorar a vida do menor.
Residências Alternadas – um novo direito das crianças?
A Lei em 2008 impôs que pai e mãe decidissem em conjunto as questões importantes da vida dos filhos, mas não impôs as chamadas residências alternadas, que aliás ainda hoje não estão instituídas como regra, apesar de alteração legislativa de 2015. Vigora o artigo 1906.º n.º 5 do Código Civil, onde se preceitua que: “ O tribunal determinará residência do filho e os direitos de visita de acordo com o interesse deste (…)”
Ora, hoje em dia e cada vez mais, os progenitores para além de partilharem a responsabilidade da decisão partilham equitativamente com as mães o tempo dos menores. A família monoparental vai dando cada vez mais lugar a outra realidade familiar em que a criança vive com ambos os progenitores em lares diferentes.
Nesta matéria, os nossos tribunais já aceitam na sua maioria a figura das residências alternadas, não levantando em regra muitos obstáculos à sua fixação, desde que haja acordo de ambos os pais. Aliás o artigo 1906.º, n.º 7, do Código Civil é expresso ao estabelecer que o tribunal deve promover e aceitar acordos que favoreçam amplos contatos com ambos os progenitores.
O grande desafio para todos os intervenientes judiciários, coloca-se em situações de desacordo entre os pais. A lei não impõe as residências alternadas, e os julgadores salvo algumas exceções também não.
Mas deverão as residências alternadas ser impostas como regra? Há quem defenda que sim, salientando que essa é a única forma das crianças se vincularem a ambos os progenitores, e que só desenvolvendo uma vinculação segura com ambos, a criança estará apta a explorar o que a rodeia, e consequentemente a aprender e a desenvolver-se. Neste novo mundo das famílias o tribunal cada vez mais necessita de se socorrer do conhecimento interdisciplinar, nomeadamente da psicologia. O intercâmbio de conhecimento permite que o julgador possa dizer com segurança que a criança se vincula a pessoas e não a lugares e, naturalmente, se fixem as residências alternadas.
Serão as residências alternadas um novo direito das crianças? Alguns decisores entendem que sim e impõem este regime, mesmo em crianças com poucos meses de vida, mesmo quando os progenitores não residem perto e até já se equaciona a sua fixação quando os progenitores vivam em países diferentes. Os defensores deste modelo de residência alicerçam as suas decisões na necessidade absoluta de vinculação da criança com ambos os progenitores, e sobrepõe essa vinculação às rotinas instituídas, à “tenra idade”, muitas vezes à amamentação. O regime de residências alternadas é igualmente defendido como uma forma de diminuição do conflito parental e uma forma eficaz de combate à alienação parental.
Mas se cada vez mais as residências alternadas são entendidas como um direito das crianças, então qual o motivo pelo qual não foram consagradas como regra, à semelhança do exercício conjunto das responsabilidades parentais? Um dos motivos será certamente pelo facto de não haver ainda hoje consenso social acerca desta nova forma de organização familiar. Aliás bastará atentar às decisões judiciais para se perceber que estas diferem de tribunal para tribunal, de juízes para juízes dentro do mesmo juízo e até de Norte para Sul.
Sendo inegáveis os benefícios para as crianças deste tipo de regime, a verdade é que a solução que ideologicamente parece ideal pode não o ser no caso concreto. A jurisprudência maioritária ainda afasta o modelo de residências alternadas em situações de conflito entre os progenitores, por entender que as mesmas potenciam e agravam aquele conflito.
A nossa opinião é a de que, como em todos os aspetos na vida das famílias, não podem ou devem existir regras fixas, nem a favor de um modelo nem a favor de outro. A residência alternada deve ser fixada se se apurar em concreto que são as que melhor defendem os interesses da criança; a residência exclusiva será aplicada se for entendido como a melhor solução numa determinada situação. Uma boa decisão tem necessariamente de ter em conta a situação concreta, sob pena de se correr o risco de se cair em situações extremas, e em que se aplica um modelo de residência baseado única e exclusivamente em convicções pessoais e completamente desfasada da realidade daquela família.
A fixação do regime provisório
Dispõe o artigo 38.º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível que se ambos os progenitores estiverem presentes na conferência de pais mas não chegarem a acordo, seja o juiz a decidir provisoriamente sobre o pedido em função dos elementos já obtidos. Assim, o tribunal é obrigado a fixar um regime provisório de exercício das responsabilidades parentais, A residência das crianças é fixada com a mãe, com o pai, ou com ambos, desde logo, sem qualquer indagação se aquele modelo é o que melhor se adequa aos interesses daquela criança e da sua família. E não raras vezes a rotina da criança é drasticamente alterada de um dia para o outro, muitas vezes contra a sua (legitima) vontade e, supostamente, em defesa do seu direito.
A alteração legislativa à lei processual na tentativa de proteger as crianças, de tornar o processo mais célebre, mais informal, tornou-o também mais inseguro. Tomam-se decisões provisórias, alicerçadas nas convicções do julgador, na jurisprudência maioritária, na jurisprudência dos Tribunais superiores. As decisões provisórias são alicerçadas nos mais variados motivos, menos no caso concreto, na vida da criança, no relacionamento dos pais, nas suas motivações.
Antes de se fixarem regimes provisórios, é preciso indagar, ainda que indiciariamente, sobre as condições da família em questão. Como esteve organizada antes da separação, como está (des)organizada após a separação, a capacidade de diálogo dos progenitores, as condições de habitabilidade e higiene que têm para oferecer à criança, a adaptação da criança à nova realidade familiar. Para tanto, são precisas estruturas especializadas que tenham oportunidade de verificar ainda antes da conferência de pais a situação real da família. O tribunal não tem tempo nem meios adequados a esta análise, nem a mesma pode ser feita numa conferência de pais, que é, necessariamente, limitada pelo tempo.
Existindo processo judicial, e ainda antes da conferência de pais, deveriam estes ser contatados por uma equipa multidisciplinar, constituída por psicólogo, psicoterapeuta e até mediador familiar, que ouvissem as partes e até outros elementos da família. Portanto, o que processualmente já está previsto como audição técnica especializada e mediação familiar, (artigo 38.º do RGPTC) e que tem lugar após a conferência de pais, (caso não haja acordo dos progenitores), devia ocorrer logo na fase inicial do processo, antes da conferência de pais, antes de ser tomada qualquer decisão provisória.
Desta forma chegados à conferência de pais, estava já reunida prova suficiente para ser proferida uma decisão adequada àquela família, para que ambos os progenitores e até o menor, desde que com idade e maturidade para tal, sentissem que são ouvidos (e compreendidos) e que a decisão tomada pelo tribunal foi uma decisão adequada à sua realidade.
Começando uma equipa interdisciplinar, desde logo, a trabalhar com a família, procurando consensos por um lado, através de mecanismos de mediação, e por outro avançando logo com a recolha de informações necessárias, o litigio seria necessariamente menor, ou pelo menos não se exacerbava, (como muitas vezes ocorre após as conferencias de pais). Ademais, sendo ambos os progenitores ouvidos, ambos se sentiriam como fazendo parte da solução aplicada à sua família e, mais facilmente, a interiorizariam e validariam.
Em nossa opinião, andou mal o legislador ao exigir ao julgador uma decisão imediata, ainda que provisória, só com base nos “elementos já obtidos”. Passou-se de uma situação em que as decisões tardavam, pois raramente eram fixados regimes provisórios, para uma situação de obrigatoriedade de uma decisão que se pode dizer cega.
Cada família tem uma individualidade própria, todas as soluções, quer seja de residência exclusiva, quer seja de residência alternada, terão de ser legalmente possíveis, para que o julgador as possa aplicar, face ao caso concreto e face aos elementos apurados com seriedade.
As realidades familiares estão em constante mutação, a família de ontem não é a mesma de hoje e não será a de amanhã. Assim, quanto mais rígida for a lei, menor será a sua capacidade de se adaptar às novas realidades.
Alexandra Almeida
in Vida Judiciária, março/abril 2018