Os elementos da infração no atual Código e no futuro “novo” Código.

A marca assume hoje em dia uma dimensão absolutamente crucial no mundo empresarial. Serve para distinguir a proveniência de determinado produto ou serviço, identificando-os com o seu produtor ou prestador, garantindo a sua qualidade e genuinidade. Assume um valor muitas vezes incalculável, senão mesmo o maior ativo da empresa.
Daí que se tenha consagrado um sistema de registo de marca que confere ao seu titular o direito, em exclusivo, do uso do sinal, e, consequentemente, o direito de impedir terceiros de o utilizar.
Desde cedo a importância que as marcas passaram a deter no mundo empresarial impediu que a sua proteção dependesse exclusivamente da iniciativa do titular da marca, através do recurso à via judicial civil. A sua proteção e, nomeadamente a dos consumidores em geral, impunha também a tutela de natureza penal.
Assim, encontra-se no regime do Direito Industrial português a tipificação das infrações à marca registada. Duas delas, diríamos, as mais frequentemente submetidas a decisão dos nossos tribunais criminais, são a contrafação e a venda de produtos contrafeitos.
O artigo 323.º do Código da Propriedade Industrial (CPI), com a epígrafe “Contrafação, imitação e uso ilegal de marca”, fixa a punição para o ato de quem, sem autorização do titular do direito, “contrafizer, total ou parcialmente, ou por qualquer meio, reproduzir uma marca registada”. O legislador fixou, a título de punição, uma moldura penal de prisão até três anos ou pena de multa até 360 dias.
Ora, os termos “contrafizer” e “reproduzir” que se elencam na alínea a) deste artigo são usados com o mesmo significado e alcance. Deste modo, na praxis judicial mostrou-se dispensável o uso simultâneo destes termos. Também a especificação de “total” ou “parcial” se mostrou igualmente dispensável, na medida em que a contrafação de marca será, muitas vezes, uma reprodução total, cabendo a reprodução parcial, mais frequentemente, já no âmbito da imitação de marca.
Nos casos de importação de produtos contrafeitos, ainda se têm verificado dificuldades na aplicação do dispositivo do mesmo artigo 323.º, pois nele não se prevê objetivamente tal conduta, que, cada vez mais se multiplica. Mas, não obstante, entendemos que, embora a atual lei não determine objetivamente o ato de importação, esta prática não se encontra impune, pois terá o seu enquadramento no ato de “pôr em circulação”, que se tipifica ainda no artigo seguinte, relativo ao crime de venda de produtos contrafeitos.
É assim, num contexto de cada vez mais garantir o respeito pelos Direitos de Propriedade Industrial e de clarificação da norma punitiva do ato de importação, que a Proposta de Lei n.º 132/XIII, publicada no Diário da Assembleia da República, II Série, em 16/05/2018, para alteração do CPI, inclui no tipo do crime de contrafação o ato de importação de produtos que ostentem marcas contrafeitas. Esta Proposta visa transpor a Diretiva UE n.º 2015/1436, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16/12, que aproxima as legislações dos Estados-Membros em matéria de marcas.
Aquele que poderá vir a ser o artigo 320.º do novo Código da Propriedade Industrial, determina, sob a mesma epígrafe do atual Código e com a exata moldura penal, que cometerá o crime de contrafação quem, sem o consentimento do titular da marca “fabricar, importar, adquirir ou guardar, para si ou para outrem, (…) quaisquer suportes que reproduzam ou imitem uma marca registada, no todo ou em alguma das suas partes características; (excerto da alínea a) e “importar, exportar, distribuir, colocar no mercado ou armazenar (…), produtos com marcas contrafeitas ou imitadas;” (excerto da alínea d).
Ficará assim clarificada aquela que é ainda a redação da alínea a), do referido 323.º, relativa aos atos de contrafação, suprindo-se a utilização simultânea de termos com o mesmo significado e alcance. Ficará ultrapassada a omissão da punição objetiva da conduta de importação. Também os atos de distribuir, de colocar no mercado, de armazenar ou de manter em depósito, que atualmente encontram a sua previsão no 324.º e que equivalem à forma “pôr em circulação”, passarão a ser punidos como crime de contrafação.
O que se prevê neste artigo 324.º do CPI é o crime de venda (circulação ou ocultação de produtos ou artigos), que é um crime doloso. Para se mostrar verificada a sua prática é portanto necessária a demonstração de que o agente tem ”o conhecimento e a vontade de realização do tipo objetivo de ilícito”, conforme dispõe o artigo 14.º do Código Penal. Acresce que é exigida pela atual redação da lei que, para além do dolo geral, em qualquer das suas vertentes (direto, necessário e eventual), se mostre verificado o preenchimento do requisito do dolo específico, a saber: o conhecimento da ilicitude dos produtos ou artigos vendidos, colocados em circulação ou ocultados.
No entanto, nem sempre o requisito do conhecimento da situação esteve presente no tipo legal deste crime. No CPI de 1940 eram punidos “os que venderem ou puserem à venda ou em circulação produtos ou artigos com marca contrafeita, imitada ou fraudulentamente usada”. A exigência do conhecimento de que os artigos eram contrafeitos surgiu no CPI de 1995, permanecendo até hoje a referida exigência do tipo legal.
Perante esta formulação, desde logo surgiram dificuldades práticas. Isto porque o tipo legal do crime, exigindo que o agente tenha conhecimento de que os artigos são contrafeitos (dolo específico), origina um aumento de exigência, que se considera injustificada, à produção da prova que deve ser concretizada em todos os crimes dolosos (i.e., crimes não puníveis a título de negligência). Face a este acrescento de exigência ao nível da prova, começaram, desde logo, a surgir situações em que os arguidos alegam não ter conhecimento de que os artigos são contrafeitos, na tentativa de obter uma absolvição com este fundamento.
Tal requisito adicional coloca sobre o titular da marca ou sobre o Ministério Público um ónus de prova injustificadamente agravado, muitas vezes inultrapassável em sede de audiência de julgamento. É bem um exemplo de prova diabólica.
Hoje, numa sociedade com acesso privilegiado à informação e num mercado de distribuição organizado, nenhum sentido faz impor ao titular da marca, que vê o seu direito exclusivo de uso e exploração infringido, o dever de provar que quem vende artigos com a sua marca sabe que aqueles produtos são contrafeitos. A falta da prova de que o infrator tem conhecimento de que os produtos, que detém ou que vende, são contrafeitos, tem conduzido, algumas vezes, ao arquivamento de processos-crime, em arrepio das regras da razão, da lógica e da experiência comum.
Verifica-se o crime de venda sempre que o infrator seja identificado na posse de artigos não originais destinados a serem vendidos, independentemente de no momento da abordagem policial se encontrar ou não a vender ou a interpelar potenciais clientes. É indiferente à consumação do crime que o infrator tenha sido ou não surpreendido a transacionar, seja em situação de revenda ou de venda direta ao público consumidor.
A complexidade trazida pela redação do artigo 324.º vem sendo mitigada pela aplicação válida das regras da experiência comum na (livre) apreciação da prova por parte do julgador. Não contendendo com a presunção de inocência, não pode ser aceitável que um comerciante com largos anos de experiência no exercício da sua profissão desconheça a natureza contrafeita de artigos em comercialização por preços múltiplas vezes inferiores ao preço normal de venda ao público ou que a venda de artigos de marcas de prestígio aconteça sem autorização ou ainda sem o respetivo suporte contabilístico.
Apesar do trabalho meritório dos tribunais na apreciação concreta da prova que se produz nos milhares de audiências em processos em que são julgados crimes desta natureza, o certo é que a permanência deste elemento específico do tipo subjetivo do ilícito mantém alguma incerteza e diminui a capacidade de enforcement dos direitos dos titulares das marcas, sem que tal restrição encontre qualquer justificação plausível.
Só há produção de artigos contrafeitos porque há quem se disponha a vendê-los e, não tão raras vezes, só se encontra quem se apresta a produzir por força da pressão de quem pretende vender.
Também aqui parece que é esse o caminho que o legislador pretende percorrer, aproximando os tipos de ilícito consagrados no CPI, nomeadamente, no que diz respeito ao elemento subjetivo. A referida Proposta de Lei n.º 132/XIII, para alteração do CPI, inova ao retirar o elemento específico do tipo subjetivo do crime de venda e ocultação (a colocação em circulação passará a merecer outra incriminação), bastando-se com a verificação do dolo geral. O artigo 321.º, incluído nessa Proposta, que tem por epígrafe apenas “venda ou ocultação de produtos” dispõe que “é punido com pena de prisão até 18 meses ou com pena de multa até 120 dias quem vender ou ocultar para esse fim produtos que estejam nas condições referidas nos artigos 318.º a 320.º”. A aplicação da norma punitiva que se prevê com o novo artigo 321.º fica limitada aos atos de venda (e de ocultação) de produtos que infrinjam os Direitos de Propriedade Industrial.
As alterações que o novo Código da Propriedade Industrial trará nesta matéria, numa linha de clarificação dos termos e de harmonização dos conceitos, no âmbito da tipificação do crime de contrafação e do crime de venda de produtos contrafeitos, corresponderão a um passo importante na concretização de uma efetiva proteção dos titulares de marcas registadas e, portanto, dos consumidores, que somos todos nós.

Cristina Simões
in Vida Judiciária nov/dez 2018

Alcides Martins, Bandeira, Simões & Associados,
Sociedade de Advogados, SP, RL