[publicado em Vida Económica, de 22 de abril de 2022]

Já se podem entregar os imóveis aos exequentes e senhorios?

Com a publicação do Decreto-Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, foram aprovadas medidas excecionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2, agente causador da doença COVID-19.
Uma das maiores preocupações do legislador à data foi determinar a suspensão dos prazos para a prática de atos e as diligências processuais até à cessação da situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica. Inclusivamente, o artigo 7.º, n.º 10 da 1.ª versão do Decreto-Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, previa, de forma expressa, a suspensão das ações de despejo, procedimentos especiais de despejo e os processos para entrega de coisa imóvel arrendada, quando o arrendatário, por força da decisão judicial final a proferir, viesse a ser colocado em situação de fragilidade por falta de habitação própria. Porém, nesta versão do diploma, não foi salvaguardada a situação particular dos processos executivos (ou de insolvência), no âmbito dos quais os visados também poderiam vir a ser colocados em situação de fragilidade por falta de habitação própria.
Por sua vez, na 2.ª versão do diploma, aprovada pela Lei n.º 4-A/2020, de 06/04, o artigo 7.º sofreu várias alterações, e em especial, foi aditada a alínea b) do n.º 6, esclarecendo que a suspensão também abrangeria os atos a realizar em sede de processo executivo, designadamente os referentes a vendas, concurso de credores, entregas judiciais de imóveis e diligências de penhora e seus atos preparatórios, com exceção daqueles que causem prejuízo grave à subsistência do exequente ou cuja não realização lhe provoque prejuízo irreparável, nos termos previstos no n.º 2 do artigo 137.º do Código de Processo Civil, prejuízo esse que depende de prévia decisão judicial.
Ao excecionar a suspensão de atos que causem prejuízo grave à subsistência do exequente, o legislador teve em atenção que, não obstante o prejuízo para os executados com a prossecução da ação executiva atendendo à situação pandémica vivida, também se mostrava necessário acautelar os interesses dos exequentes em determinadas situações, designadamente quando a suspensão acarretasse graves consequências à sua subsistência ou lhe provocasse prejuízo irreparável. Assim, e como acontece frequentemente no Direito, é imperioso fazer uma ponderação casuística, de forma a evitar danos desnecessários às partes.
Na 6.ª versão do diploma, aprovada pela Lei n.º 16/2020, de 29/05, o artigo 7.º foi revogado e foi substituído pelo artigo 6.º-A que passou a prever um regime processual transitório e excecional. Nas alíneas do n.º 6 foram elencados os atos e diligências que se manteriam suspensos no decurso deste regime transitório, destacando-se:
a) A suspensão do prazo de apresentação do devedor à insolvência, previsto no n.º 1 do artigo 18.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas;
b) A suspensão dos atos a realizar em sede de processo executivo ou de insolvência relacionados com a concretização de diligências de entrega judicial da casa de morada de família;
c) A suspensão das ações de despejo, os procedimentos especiais de despejo e os processos para entrega de coisa imóvel arrendada, quando o arrendatário, por força da decisão judicial final a proferir, possa ser colocado em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa.
É de notar que o legislador decidiu manter a ressalva feita em prol dos interesses do exequente nas ações executivas, mas resolveu autonomizá-la no artigo 7.º da referida versão, dispondo que nos casos em que os atos a realizar em sede de processo executivo ou de insolvência referentes a vendas e entregas judiciais de imóveis sejam suscetíveis de causar prejuízo à subsistência do executado ou do declarado insolvente, este pode requerer a suspensão da sua prática, desde que essa suspensão não cause prejuízo grave à subsistência do exequente ou um prejuízo irreparável, devendo o tribunal decidir o incidente no prazo de 10 dias, ouvidas as partes.
Por outro lado, nas ações de despejo, a suspensão apenas se aplicaria quando os arrendatários comprovassem que a entrega judicial do locado os colocaria em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa.
Ao fazer uma interpretação literal das normas supra descritas, somos levados a concluir que o legislador quis determinar uma suspensão automática das diligências para a entrega judicial de imóveis sempre que estes constituam a casa de morada de família do executado, ao passo que decidiu exigir a verificação de certos requisitos para decretar a suspensão das referidas diligências quando se tratem de outros imóveis (que não a casa de morada de família) ou no caso das ações de despejo, em que o arrendatário terá que demonstrar que ficará sem habitação ou que existe outra razão social imperiosa que obste à entrega do locado.
Assim, no caso dos imóveis que não constituam a casa de morada de família, a suspensão não opera automaticamente, estando o executado onerado com a obrigação de alegação e prova de que a concretização dos atos de venda e entrega judicial do imóvel poderá causar um prejuízo à sua subsistência. Perante a demonstração da (forte) probabilidade deste prejuízo, e desde que esta suspensão não acarrete igualmente para o exequente um prejuízo à sua própria subsistência ou da mesma não advenha um prejuízo irreparável para este, o juiz estará em condições para decretar suspensão das referidas diligências.
Isto significa que a proteção dos interesses do exequente, aparentemente, só foi considerada nas situações referentes às vendas judiciais de outros imóveis que não a casa de morada de família do executado.
Mas o que fazer nas situações em que a suspensão automática prevista na alínea b) do n.º 7 do artigo 6.º-E, cause um prejuízo grave à subsistência do próprio exequente ou dela resulte um prejuízo considerado irreparável?
Caso sejam demonstradas as consequências negativas para o exequente com a suspensão dos atos de venda e entrega do imóvel que constitua casa de morada de família do executado – designadamente quando coloque em risco a própria subsistência do exequente – é necessário fazer um juízo de ponderação entre interesses em causa, acautelando-se os direitos do exequente se for caso disso.
Não é compreensível que, indiscriminadamente, se decrete a suspensão a favor do executado apenas porque estamos perante a venda da sua casa de morada de família, sem ter em consideração outros fatores que possam contribuir para uma situação desproporcional e injusta, tal como o risco de o exequente vir a ser colocado em situação de fragilidade por ter adquirido o imóvel objeto de venda judicial para sua habitação e ter que aguardar a cessação da suspensão ou a revogação do atual artigo 6.º-E do Decreto-Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março para nele poder residir (a situação torna-se ainda mais grave quando o executado tem meios financeiros para assegurar uma alternativa habitacional, nomeadamente quando recebeu o remanescente do produto da venda do imóvel penhado no processo executivo). Nestes casos, o legislador não deve tutelar, de igual forma, os direitos do exequente?
Por outro lado, nos casos da ação de despejo, a alínea c) exige que o executado demonstre a verificação de um de dois requisitos nela previstos – situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa – para a determinação da suspensão, isto é, esta não opera ope legis, não obstante o imóvel arrendado se tratar, na grande maioria das vezes, da casa de morada de família dos arrendatários.
No atual contexto, a referida previsão deveria ser simplesmente revogada. No entretanto, parece-nos que a suspensão prevista na alínea b) do n.º 7 do artigo 6.º-E não está conjeturada para toda e qualquer situação em que o executado venha a ser obrigado a entregar a sua casa de morada de família, devendo antes seguir-se o raciocínio definido para os casos das ações de despejo: a suspensão terá lugar se o executado demonstrar que ficará em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa que obste à prossecução das diligências de venda e entrega judicial do bem imóvel e que, no caso em apreço, mereça uma maior tutela jurisdicional do que os legítimos interesses do exequente.

Marília Soares de Holanda
Advogada de Alcides Martins, Bandeira, Simões & Associados,
Sociedade de Advogados, SP, RL

Ja se podem entregar os imoveis MSH