Foram anunciadas medidas de mitigação do aumento da taxa de esforço em contratos de crédito para aquisição ou construção de habitação própria e permanente, com valor em dívida até € 300.000,00.
Sumariamente, o legislador pretende impor um período de negociação entre os credores (bancários) e os devedores, apresentando logo algumas possibilidades de solução para o problema identificado e que é o aumento da taxa de esforço das famílias com créditos para habitação, causado pelo aumento da prestação mensal que, por sua vez, tem a sua causa no aumento das taxas de juro de referência.
O diploma aprovado (ainda não publicado à data da elaboração do presente texto) prevê que a renegociação dos contratos existentes deve ocorrer quando pelo menos uma de três situações se verificar:
a. A taxa de esforço supera os 50%,
b. A taxa de esforço aumenta pelo menos 5% e supera os 36%,
c. Aumenta o que prevê o teste de stress do Banco de Portugal e daí resulte uma taxa de esforço superior a 36%.
A taxa de esforço, na definição do Banco de Portugal, é a proporção do rendimento de um agregado familiar que está afeta ao pagamento de um empréstimo. Para um agregado familiar com um rendimento de € 1.520,00 mensais (2 vezes o salário mínimo a vigorar no ano de 2023), 36% corresponde a uma prestação de € 547,20.
Qualquer cliente bancário que se encontre nesta situação pode tomar a iniciativa de promover o início da negociação com o banco. Por outro lado, detetada uma situação em que se verifique algum destes requisitos, o credor/banco fica obrigado a estudar a situação do cliente e a apresentar-lhe soluções.
Essas soluções poderão ser:
a. O alargamento do prazo do crédito,
b. A consolidação de créditos,
c. A realização de um novo crédito,
d. A redução da taxa de juro aplicável durante um determinado período.
Prevê-se igualmente a isenção do pagamento de taxas no caso de o cliente pretender antecipar o pagamento integral do seu crédito (quem o puder fazer, precisaria dessa isenção?)
Esta é a novidade.
É velha, no entanto, porque mecanismos tendentes a propiciar negociações entre as duas partes num contrato de crédito já existem.
Desde 2012, alterado em agosto 2021, que está em vigor o Decreto-Lei 227/2012, de 25 de outubro, que estabelece princípios e regras a observar pelas instituições de crédito na prevenção e na regularização das situações de incumprimento de contratos de crédito e cria a rede extrajudicial de apoio a esses clientes.
Desde 2012, portanto, que as instituições bancárias estão obrigadas a implementar um Plano de Ação para o Risco de Incumprimento (PARI) no qual se descrevem as medidas necessárias ao acompanhamento dos créditos e das condições para o seu cumprimento. Ao abrigo desse Plano, os bancos já são obrigados a estar atentos a sinais de degradação da situação do cliente e da sua capacidade para manter o cumprimento pontual do contrato.
Esses sinais, como consta desse velho Decreto-Lei, são, designadamente, a existência de incumprimentos registados na Central de Responsabilidades de Crédito do Banco de Portugal, a devolução e inibição do uso de cheques, a existência de dívidas fiscais e à segurança social, a sua insolvência, a existência de processos judiciais e de situações litigiosas, a penhora de contas bancárias, uma situação de desemprego, a verificação de incumprimentos noutros contratos celebrados com a mesma instituição de crédito.
Quando se verifique risco de incumprimento, o banco deve propor ao cliente – sempre aplicando a legislação de 2012 – uma ou várias soluções alternativas, de entre as seguintes, a título meramente exemplificativo:
a. A celebração de um novo contrato para refinanciar o existente,
b. A consolidação de vários contratos de crédito,
c. A alteração das condições do contrato, designadamente quanto ao prazo, à fixação de um período de carência no reembolso do capital e ou juros, do diferimento de parte do capital para uma prestação futura, da redução da taxa de juro aplicável durante um determinado período.
Qualquer semelhança com o regime agora aprovado não será pura coincidência.
Quando esse mecanismo de prevenção falha na deteção ou no alcance de um acordo, ainda o mesmo Decreto-Lei prevê um Procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento (PERSI), a ativar quando os clientes entram em mora. O cliente, consta do diploma, “é obrigatoriamente integrado no PERSI entre o 31.º e o 60.º dia subsequentes à data de vencimento da obrigação em causa”.
As propostas a apresentar pelo banco nesta fase são as mesmas que se preveem no PARI, podendo o cliente aceitar, recusar ou apresentar propostas alternativas. É uma verdadeira negociação, portanto, ainda que se não possa considerar totalmente igualitária.
Para além da negociação direta com a instituição bancária está criada uma Rede de Apoio ao Consumidor Endividado (RACE) que é integrada por centros de informação e arbitragem de conflitos de consumo e por pessoas coletivas de direito público ou privado reconhecidas pela Direção-Geral do Consumidor, após parecer do Banco de Portugal, constando a lista dessas instituições precisamente do Portal do Cliente Bancário.
O banco está igualmente obrigado a informar o cliente da existência do Mediador de Crédito, criado junto do Banco de Portugal pelo Decreto-Lei 144/2009, de 17 de junho, com funções, precisamente, de mediação entre quem seja parte em relações de crédito.
Mecanismos de prevenção de incumprimento (bancário e não só) existem, são vários, em funcionamento (apesar do geral desconhecimento da sua existência e da sua função) e testados há vários anos. A divulgação plena desses meios é uma tarefa ainda não cumprida.
Será, por isso, bastante discutível que deva haver intervenção legislativa direta nesta matéria, a talhe de foice, ignorando a moldura legislativa já existente. Será igualmente discutível o efeito, benéfico ou maléfico, que tal intervenção possa ter. Mas será consensual que as medidas apresentadas não constituem nenhuma novidade nem foram pensadas especificamente para responder aos perigos de uma inflação excecionalmente elevada (pelos padrões das décadas mais recetes) que atualmente se regista.
Será prudente não inflacionar a expectativa sobre o eventual efeito que tais medidas terão na realidade.
Vida Económica, 11 de novembro de 2022
Susana Amaral Ramos
Advogada de Alcides Martins, Bandeira, Simões & Associados
– Sociedade de Advogados, SP, RL