Vida Económica, 4fev2022

 

Foi recentemente publicada a Lei 9/2022, de 11 de janeiro, que estabelece medidas de apoio e agilização dos processos de reestruturação das empresas e dos acordos de pagamento, alterando o Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, e transpondo (finalmente) a Diretiva (UE) 2019/1023, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de junho de 2019. Também o Código das Sociedades Comerciais e o Código de Registo Comercial são ligeiramente alterados por esta lei, entrando em vigor apenas em meados de abril de 2022.
O propósito, logo enunciado pelo legislador na exposição de motivos da Proposta de Lei que foi pelo Governo apresentada à Assembleia da República, é o de agilizar os processos de recuperação das empresas, que todos esperam que venham a ser usados em catadupa, assim que terminarem totalmente os apoios que foram amparando as empresas durante o período dos sucessivos estados de emergência e de calamidade decretados, para ajudar a lidar com a crise sanitária causada pelo covid-19.
Já antes da pandemia, a publicação da Diretiva datada de 20 de junho de 2019 – que deveria ter sido transposta até 17 de julho de 2021 –, tinha como objetivo anunciado aumentar a eficiência dos processos relativos à reestruturação das empresas. A opção europeia pela sua manutenção, em atividade em detrimento da sua liquidação, é clara.
O sistema jurídico português também, formalmente, privilegia a recuperação das empresas: com a instituição do já relativamente longínquo SIREVE (criado em agosto de 2012), substituído em 2018, pelo RERE (regime extrajudicial de recuperação de empresas), com o PER (processo especial de revitalização), incluído no Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas em abril de 2012) e o recém-criado PEVE (processo extraordinário de viabilização de empresas), criado especialmente para lidar com as dificuldades geradas pela situação pandémica, em novembro de 2020, e cuja vigência foi recentemente prorrogada até 30 de junho de 2023.
Querendo recuar ainda mais, o CPEREF (cm vigência entre 1993 e 2004) já preferia a recuperação à liquidação das empresas; em 1986 fora criado um processo de recuperação especial e paralelo à regulamentação que então se fazia no Código do Processo Civil do procedimento de liquidação do património da empresa. Já o Código Comercial, de 1833, previa a possibilidade de o então denominado “quebrado” (ou seja, o insolvente) propor uma concordata aos seus credores, como forma de poder ser reabilitado.
É seguro dizer, portanto, que a tradição da lei portuguesa é a de encorajar a recuperação dos intervenientes económicos que estejam em dificuldade e que mostrem sinais de poder recuperar.
A prática, no entanto, nem sempre é tão facilitadora. Algumas alterações introduzidas pela Lei 9/2022 poderão ter efeitos positivos no aproveitamento global deste mecanismo.
De entre essas alterações, salientam-se:
– a maioria necessária à aprovação do plano de recuperação.
Há agora várias formas de fazer aprovar o plano de recuperação.
A regra que já constava do PER mantém-se: pelo menos 1/3 de votos devem votar e 2/3 dos votos emitidos devem ser favoráveis ao plano apresentado, sendo mais de 50% representativos de créditos não subordinados.
Para além desta forma, o plano considerar-se-á igualmente aprovado no caso de mais de 50% dos créditos relacionados votarem e, desses, mais de 50% de créditos (não subordinados) o aprovarem.
A real novidade diz respeito à distribuição dos credores por categorias (para além das classes já previstas: privilegiados ou garantidos, comuns ou subordinados). Essas categorias devem ser organizadas em função de interesses comuns que o legislador exemplifica: os trabalhadores, os sócios, as entidades bancárias, os credores públicos. Nesse caso, o plano considerar-se-á aprovado se a maioria das categorias o votar favoravelmente, apurando-se, em cada categoria, a maioria necessária à sua aprovação. Contará a maioria das categorias, e não necessariamente a representação da maioria dos credores.
Os planos de pagamento já eram, muitas vezes, apresentados com estas distinções entre credores, embora com respeito pelo princípio da igualdade. A distinção permite adaptar as propostas de pagamento aos credores a que se dirigem e organizar as negociações de forma mais eficiente. Tendo em conta o prazo curto que continua a estar disponível – de apenas 3 meses, no máximo – esses ganhos de eficiência podem ser relevantes.
No entanto, a lei afasta logo esta obrigação (que continuará a existir como mera opção) das micro, pequenas e médias empresas. Ora, estas representam cerca de 99% do tecido empresarial português, e a grande maioria das que estão ou poderão ficar em dificuldades.
– A proteção dos financiamentos.
O PEVE – criado em novembro de 2020 – tinha introduzido medidas de proteção aos financiamentos que credores, titulares do capital social ou membros dos órgãos sociais fizessem à empresa em dificuldades. A regra é transposta para este processo de recuperação, garantindo que os valores entregues à sociedade requerente do PER no decurso do processo de negociação ou durante a sua execução serão reembolsados com prioridade sobre outros, no caso de sobrevir a insolvência da empresa, apesar dos esforços.
– Mecanismo de Alerta Precoce.
O mecanismo de alerta precoce e o seu funcionamento são preocupações da Diretiva em transposição, mas a verdade é que já existia na legislação portuguesa, criado pelo Decreto-Lei 47/2019, de 11 de abril. Também é verdade que nunca funcionou. Apenas algumas empresas estavam abrangidas pela sua previsão e mesmo essas teriam que se registar no IAPMEI para receber as tais informações de alerta.
A alteração agora introduzida torna o mecanismo aplicável a todas as empresas e destina-se a enviar à administração das empresas alertas acerca de dificuldades que a empresa atravesse ou se preveja que venha a atravessar, em resultado da comparação dos resultados anuais dessa empresa com o das suas congéneres. Espera-se que a antecipação de situações de perigo possa ser o bastante para que as empresas atempadamente tomem medidas que invertam o caminho que está a ser percorrido.
Do lado negativo da lei está, desde logo, o que dela não consta e duas inovações.
– Posição dos credores Públicos.
Nada é alterado em relação ao papel dos credores públicos, que continuam a negociar com as empresas de forma em tudo semelhante, estejam ou não em processo de recuperação. A indefetível defesa e aplicação do princípio da intangibilidade desses créditos, continua, portanto, a ser uma das principais – se não a principal – causa de insucesso destes processos de recuperação.
Se aditarmos a dificuldade em obter respostas dos interlocutores públicos, e em tempo útil, mais relevante se torna o papel destes credores no sucesso ou insucesso das tentativas de recuperação feitas pelas empresas.
Por várias vezes foi já anunciada a criação de um Balcão Único, que centralize os contactos da Segurança Social e da Autoridade Tributária com as entidades em recuperação; até agora, não foi concretizado, não se sabendo exatamente, por isso, de que forma tal Balcão funcionaria, nem que agilização poderia garantir às negociações que lhe fossem apresentadas.
– Posição dos trabalhadores.
A anterior versão do PER proibia o início de novas ações de cobrança a apresentar contra a empresa requerente do PER durante o período em que decorressem as negociações (portanto, durante 3 meses no máximo), suspendendo-se as que já estivessem em curso.
A atual versão, no essencial, mantém essa regra, com uma exceção: ações executivas para a cobrança de créditos emergentes de contratos de trabalho, da sua violação ou cessação.
Na prática, podemos ter um credor – trabalhador – relacionado como tal no PER e, ao mesmo tempo, uma ação executiva em que todo o património da executada/requerente do PER está à disposição daquele credor. Facilmente se compreende a perturbação que tal pode introduzir no processo negocial e no próprio sucesso – ou insucesso – do plano.
A Diretiva europeia permitia uma solução diferente desta, desde que a legislação nacional garantisse o efetivo pagamento dos créditos laborais. Ao invés de imaginar uma solução mais criativa, o legislador nacional limitou-se a reproduzir na Lei 9/2022, de 11 de janeiro o teor do artigo 6.º, n.º 5 da Diretiva (UE) 2018/1023.
– Prazo de suspensão de medidas executórias.
Embora o legislador tenha mantido o prazo para as negociações no âmbito do PER num máximo de 3 meses, permite que o período de suspensão de medidas executórias seja fixado num máximo de 5 meses. Durante esse período de suspensão, os credores estão impedidos de iniciar ações executivas (e não já ações de cobrança, como se referia a anterior versão da lei). Durante o mesmo período, também não será possível recusar fornecimentos, resolver ou alterar contratos que sejam essenciais à atividade da empresa em recuperação.
É difícil compreender totalmente a intenção do legislador: se há acordo após os 3 meses de negociação, aplicar-se-á o que for aprovado pela maioria; se não há, os credores deveriam ficar livres de quaisquer restrições no exercício dos seus direitos.
Se a intenção é a de proteger a empresa no período que medeia entre o termo do período das negociações e o trânsito em julgado da sentença que homologue o acordo, a solução mais certa seria a de simplesmente prolongar o período de proteção da empresa até essa decisão definitiva quanto ao acordo.
Está por demonstrar que as alterações introduzidas por inspiração europeia sejam suscetíveis de agilizar o PER e de o tornar num mais eficaz meio de recuperação de empresas em dificuldade. Veremos se não será mais um caso de vira o PER e toca o mesmo.

Susana Amaral Ramos
Advogada de Alcides Martins, Bandeira, Simões & Associados
– Sociedade de Advogados, SP, RL5